Fliperama - Antonio Prata

Shakespeare atarantado

ONTEM À tarde o crítico literário Stephen Greenblatt contou ter ligado certa vez para James Shapiro, seu parceiro na mesa "O Mundo de Shakespeare", para tirar uma dúvida: com quem o maior escritor de todos os tempos estava dormindo em 1599?

Shapiro -autor de "1599: Um Ano na Vida de William Shakespeare"- respondeu que, provavelmente, o atarantado William não pegava ninguém: dedicava todo o tempo ao teatro, escrevendo, atuando, produzindo e administrando sua companhia. Isso tudo, acrescentou, numa época em que a Europa ainda não conhecia o café ou o chá, ou seja, não contava com o auxílio providencial da cafeína.

Risos na plateia: por alguns instantes, Shakespeare deixou de ser Deus e surgiu em nossas cabeças como um sujeito tangível, de camisolão e olheiras, escrevendo em seu quarto ou caminhando esbaforido por uma viela de Londres, engolindo uns nacos de pão duro, quem sabe indo brigar com um fornecedor que atrasara a entrega de uns metros de linho para o figurino da peça do dia seguinte.

Talvez essa seja uma das funções mais importantes dos encontros literários como a Flip: desmistificar a literatura. Tirar os escritores das torres de marfim em que muitas vezes os leitores pensam que eles vivem -não raro, aliás, por culpa dos próprios autores, que não acham de todo mal serem vistos como seres ungidos- e mostrá-los ali, com suas vozes titubeantes, suas calvas, suas meias aparecendo por sob as calças.

Respeito demais pela literatura é sinal de pouca intimidade com ela. Paradoxalmente, é pondo os escritores em cima de um palco, falando sobre seus escritos, que os trazemos para mais perto do chão, onde estamos nós, eles e nossas mortais vidinhas: matéria-prima, afinal de contas, de todos os livros.