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Pasquale Cipro Neto

"O Homem Velho"

O homem velho da letra de Caetano parece mesmo ser esse nobre ser que fez um pedido ao deus Tempo

PENSEI E repensei se devia escrever "antes da hora" sobre os (quase) 70 anos do amado Caetano Veloso. Abro o site de Caetano e vejo que ele (o site) mudou. Os 70 anos do mestre já estão estampados ("Caetano Veloso 70"), então perco o receio de falar antes do aniversário (no próximo dia 7).

Faz mais de um mês que penso em escrever sobre isso e, quando me imaginava fazendo-o, a primeira coisa que me vinha à mente era a monumental canção "O Homem Velho", que está no não menos monumental disco "Velô", de 1984. Caetano dedica a canção "à memória de meu pai, a Mick Jagger e a Chico Buarque, que agora tem 40 anos, mas aos 20 fez uma canção belíssima sobre o tema".

A canção a que Caetano se refere é a também monumental "O Velho", que está no disco "Chico Buarque Vol. 3", de 1968 (Chico tinha 24 anos): "O velho vai-se agora / Vai-se embora / Sem bagagem / Não sabe pra que veio / Foi passeio / Foi passagem / Então eu lhe pergunto pelo amor / Ele me é franco / Mostra um verso manco / De um caderno em branco / Que já se fechou...".

O homem velho da canção de Caetano é outro. Parece saber pra que veio -e não foi passeio, nem passagem: "Os filhos, filmes, ditos, livros como um vendaval / Espalham-no além da ilusão do seu ser pessoal / Mas ele dói e brilha único, indivíduo, maravilha sem igual / Já tem coragem de saber que é imortal".

Caetano já tinha feito um "acordo" com o deus Tempo, na inesquecível "Oração ao Tempo" (do disco "Cinema Transcendental", anterior a "Velô"): "És um senhor tão bonito / Quanto a cara do meu filho / Tempo Tempo Tempo Tempo / Vou te fazer um pedido (...) Peço-te o prazer legítimo / E o movimento preciso (...) Quando o tempo for propício (...) De modo que o meu espírito / Ganhe um brilho definido / (...) E eu espalhe benefícios / (...) O que usaremos pra isso / Fica guardado em sigilo (...) / Apenas contigo e migo (...) / E quando eu tiver saído / Para fora do teu círculo (...) / Não serei nem terás sido (...) / Ainda assim acredito / Ser possível reunirmo-nos (...) / Num outro tipo de vínculo (...) / Portanto peço-te aquilo / E te ofereço elogios (...) / Nas rimas do meu estilo / Tempo Tempo Tempo Tempo".

O homem velho da letra de Caetano parece mesmo ser esse nobre ser que fez um pedido ao deus Tempo (e caminha para ser merecedor da anuência desse deus). Lembra o que diz Drummond em seu antológico poema "Os Ombros Suportam o Mundo": "Pouco importa venha a velhice, que é a velhice? / Teus ombros suportam o mundo / e ele não pesa mais que a mão de uma criança".

Volto à letra de "O Homem Velho" e a alguns de seus fortes versos: "O homem velho deixa vida e morte para trás / (...) O homem velho é o rei dos animais / A solidão agora é sólida, uma pedra ao sol / As linhas do destino nas mãos a mão apagou / Ele já tem a alma saturada de poesia, soul e rock'n rol / As coisas migram e ele serve de farol...".

Detenho-me neste belíssimo verso: "As linhas do destino nas mãos a mão apagou". Como se não bastassem a beleza e a profundidade do sentido desse verso, há nele a quinta-essência da construção linguístico-literária. Ao inverter a ordem "natural" da frase ("A mão apagou as linhas do destino nas mãos") e, consequentemente, mantê-la na voz ativa (a passiva seria "As linhas do destino nas mãos foram apagadas pela mão"), Caetano é certeiro: mostra com ênfase e sabedoria o que faz a "mão" (que aí é metáfora e metonímia da vida, da passagem do tempo) com as linhas do destino que temos nas mãos.

Um beijo na alma, Caetano. É isso.

inculta@uol.com.br

AMANHÃ EM COTIDIANO
Barbara Gancia

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