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Antonio Prata

Demorou, já é

Pensei que o 'demorou!' fosse o apogeu do 'sim', mas, diante do 'já é!', o 'demorou!' parece até blasé

Do Rio de Janeiro gosto de muitas coisas: da malabarística eficiência das casas de suco, do orgulho aristocrático dos garçons, das árvores alienígenas do Aterro, dos luminosos dos armarinhos em Copacabana, da língua: essa língua tão parecida com a falada pelos paulistanos e, ao mesmo tempo, tão diferente.

Veja o "demorou!", por exemplo. Lembro bem da primeira vez que ouvi um amigo carioca usar a expressão, anos atrás. Acabávamos de nos sentar num bar, numa rua pacata do Leblon, ajeitei minha cadeira e propus: "Vamos pedir umas empadas?". "Demorou!". "Como? A gente acabou de chegar!". "Então, pede aí, demorou!". "Ué, se tá achando que eu demorei, porque cê não pediu antes da gente sentar?". A conversa seguiu truncada por mais algum tempo, até que este obtuso paulista compreendesse, admirado, que o "demorou!" não era uma reclamação, mas uma manifestação de júbilo.

O "demorou!" é um sim turbinado. Mais do que isso, é uma proposta de parceria. Eu digo que quero empadas: meu amigo, ao responder "demorou!", indica não só que também as quer como que já as queria antes, de modo que estamos atrasados. As empadas, agora, são uma confirmação de nossas afinidades e um urgente (mini) projeto coletivo, que me enche de uma alegria infantil. É como se ele se juntasse a mim no gira-gira, dando impulso, como se corrêssemos para saltar de bombinha na piscina -o último que chegar é mulher do padre.

Por anos, acreditei que o "demorou!" fosse o apogeu do "sim"; até que surgiu o "já é!". Incrível, mas, diante do "já é!", o "demorou!" parece até blasé. O "já é!" leva a concordância à beira da esquizofrenia. "Vamos pedir umas empadas?", "Já é!" -e não estamos mais atrasados na satisfação, estamos em pleno gozo, já comemos as empadas assim que manifestamos nosso desejo de pedi-las, caímos na piscina no mesmo momento em que pulamos.

Se o "demorou!" é um acelerador apertado no caminho da satisfação, o "já é!" é como a barrinha na gaiola do rato, que, acionada, faz serem despejadas no sangue algumas gotas de serotonina -ou empadas de camarão-, é o seio descendo dos céus em direção à boca do bebê, é o Nirvana se apoderando da mesa do bar. Se um é a superconcordância, o outro é o superpresente: não só "é" como "já é!". É como se o desejo fosse capaz, tal qual a luz, de dobrar o tempo, criando o "mais do que agora", esta estreita faixa entre o mar e as montanhas onde nossas vontades são realizadas no instante em que surgem.

O paulistano ranzinza verá no "demorou!" e no "já é!" traços de nossa eterna cordialidade, sombras de uma hipocrisia mui brasileira que, se nos abriga no frescor do acolhimento, também nos impede de instituir a seca racionalidade, necessária para o pleno desenvolvimento da civilização. Pode ser, mas vejo agora o outro lado, esta incontrolável propensão para o prazer, esta alegria infinita nas parcerias, mesmo (ou, talvez, principalmente) nas mais desimportantes. Sei lá, minha modesta pena de cronista não é capaz de desdar o nó. Quem sabe um dia desses o grande José Miguel Wisnik, estudioso da linha tênue e tenaz que amarra nossas glórias e fracassos, não se anima e escreve algo a respeito? Demorou! Já é!

antonioprata.folha@uol.com.br
@antonioprata

AMANHÃ EM COTIDIANO
Pasquale Cipro Neto

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