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Pasquale Cipro Neto

"A candidatura de animais"

Tudo isso não pode ser traduzido por "hoje em dia, não é mais possível a candidatura de animais"

E LÁ vou eu pelo cada vez mais irracional e mal gerenciado trânsito de São Paulo. O rádio do carro me põe a par do que acontece pelo Brasil e pelo mundo. E me faz rir, também. A moçada do jornalismo radiofônico se esforça! A competição é acirrada. O quadrangular (rádio, TV, jornais e sites) é disputadíssimo.

Dia desses, numa das grandes emissoras do país, falava-se de curiosidades de algumas eleições para prefeitos e vereadores antes do voto eletrônico. Não se tratava de um bate-papo, comentário ou debate. Era uma matéria mesmo, lida por uma profissional de boa voz. Dizia-se que no começo da década de 60, numa eleição como a deste ano, o mais votado para a edilidade paulistana foi o rinoceronte Cacareco, simpático habitante do Zoológico de São Paulo. Disse-se também que, no mesmo ano, na cidade de Jaboatão dos Guararapes (que fica em Pernambuco, colada ao Recife), o mais votado foi o chimpanzé Cheiroso. Em seguida, informou-se que, anos mais tarde, no Rio de Janeiro, o vitorioso foi o macaco Tião.

Posto isso, veio a pérola, que tento reproduzir com alguma fidelidade: "Hoje em dia, com o advento do voto eletrônico, não é mais possível a candidatura de animais". Elaiá, elaiá, elaiá!!! Quer dizer que antes do voto eletrônico os animais podiam candidatar-se? Bem, os mais "maldosos" talvez digam que os animais sempre puderam candidatar-se...

O fato é que o/a redator/a da matéria empregou a expressão "candidatura de animais" como elemento de costura do texto, a costura que se vai fazendo ao longo do texto para que suas partes se unam, dialoguem, constituam um só tecido, para que o leitor consiga avançar na leitura do texto sem precisar voltar a passagens anteriores para entender do que ou de quem se fala.

Quando se usa um pronome, um substantivo ou uma expressão para fazer referência a algo ou alguém já citados em parte(s) anterior(es) do texto, emprega-se um dos tantos recursos para que se estabeleça essa costura. Se o assunto é futebol e se fala do grande Garrincha, por exemplo, pode-se fazer referência a ele com o emprego da expressão "O Anjo das Pernas Tortas". Se isso é feito como manda o figurino, informa-se a quem ainda não sabe que essa é a antonomásia pela qual o grande Garrincha é conhecido (aproveito para recomendar a leitura do antológico poema "O Anjo das Pernas Tortas", de Vinicius de Morais).

Pois bem. Na matéria radiofônica que citei no começo deste texto, a expressão "a candidatura de animais" não estabelece a costura que deveria ter sido estabelecida. A questão é simples: nas eleições municipais, quando não havia o voto eletrônico, o eleitor recebia uma cédula, na qual marcava com um X o seu candidato a prefeito (havia uma lista com o nome dos candidatos) e escrevia o nome do candidato a vereador. E era aí que a festa rolava. O eleitor podia escrever o que bem entendesse: Cacareco, Cheiroso, Macaco Tião etc. Tudo isso não pode ser traduzido por "não é mais possível a candidatura de animais". Poderia dizer-se algo como "não é possível votar em nomes que não estejam na lista", por exemplo.

O episódio me trouxe à mente o cavalo Incitatus, o favorito do célebre imperador romano Calígula, que, sem pestanejar, nomeou o equídeo para o Senado. Por aqui, antes do voto eletrônico, a vida dos cavalos, rinocerontes, chimpanzés e macacos era um pouco mais dura do que a de Incitatus, já que a eleição não lhes caía no colo; era preciso candidatar-se. Hoje... Bem, é melhor deixar isso pra lá. É isso.

inculta@uol.com.br

AMANHÃ EM COTIDIANO
Barbara Gancia

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