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Depoimento - Mônica Teixeira

'Cabo Bruno sentia-se justificado', diz jornalista

Tomara que tenha desaparecido para sempre o ambiente que fez do matador uma figura maior que o cidadão Florisvaldo

MÔNICA TEIXEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"O Cabo Bruno morreu; resta o cidadão Florisvaldo de Oliveira". A frase, atribuída pelo advogado Fábio Ferreira Jorge a seu cliente, apareceu na Folha na sexta-feira, dia 24, quando o ex-PM foi "devolvido à sociedade", depois de 27 anos preso.

O cidadão Florisvaldo, hoje pastor evangélico, pintor de paisagens, mereceu a liberdade pelo bom comportamento durante seus últimos 20 anos de cadeia.

Entre 1981 e 1983, Bruno construiu a fama de "matador da zona sul" pela repetição de crimes de morte a ele imputados. Quando fiz a primeira de várias reportagens sobre o caso, no Fantástico, os jornalistas que cobriam polícia só conheciam seu apelido.

O nome, a pertinência à Policia Militar, a patente -ele foi expulso da corporação ainda como soldado- foram sendo, aos poucos, revelados.

Lembro-me de falar sobre ele na frente da casa que dividia com outros policiais, na Estrada do Alvarenga, ainda sem saber sua identidade -que Renato Lombardi, do "O Estado de S. Paulo", e eu acabamos por divulgar em um mesmo final de semana.

A série de crimes atribuídos a Florisvaldo de Oliveira era extensa e impressionante. Tomei conhecimento lendo depoimentos na então Delegacia de Homicídios do Deic.

Nos inquéritos, as testemunhas falavam em pessoas às vezes encapuzadas, que levavam embora homens muito jovens dos bairros cortados pela Estrada do Alvarenga.

Depois, eles apareciam mortos, seus corpos jogados na beira dos braços da represa Billings, nas cercanias

Ainda me é inesquecível a cena deixada pela morte a tiros de seis rapazes em uma pequena oficina de móveis de vime. O sangue deles cobria o chão como um carpete amarronzado e espesso.

Em 1984, encontrei-me com ele, já expulso da PM e foragido, para uma entrevista de duas horas de duração, que Hugo Sá Peixoto filmou e a Abril Vídeo veiculou.

Perguntei sobre os crimes e as motivações. À medida em que a conversa avançava, o ex-PM -na época, ele também um jovem como os que executou- mostrava nos olhos azuis um entusiasmo, quase um júbilo, consigo próprio e com seus feitos.

Bruno sentia-se justificado: matou quem fez o mal. Ele nos contou como decapitou um homem chamado Edson Ferreira; como torturou e matou um garoto de 20 anos, Ademir José dos Santos. Informou que parou de contar seus homicídios quando o número chegou a 33.

CIDADÃO

Cabo Bruno, registra a Folha, já morreu. Tomara. Tomara também tenha desaparecido para sempre o ambiente que engendrou o matador e fez do Cabo Bruno uma figura tristemente maior que o cidadão Florisvaldo.

O entusiasmo que deixou transparecer na entrevista, ao jactar-se de seus feitos, resultava de uma certa quantidade de álcool e também do caldo de cultura em que os bairros mais longínquos e pobres de São Paulo estavam imersos.

Era uma combinação de João Figueiredo na Presidência da República, governo Maluf em São Paulo, inflação próxima dos 100%, desemprego, recessão e criminalidade, com pouca ou nenhuma resposta de uma polícia violenta, desequipada e destreinada.

Na figura de Bruno se encarnou a ideia da justiça por conta própria. Havia justiceiros por toda a periferia -que matavam supostos "bandidos", em geral a mando e soldo de pequenos comerciantes.

Nela se encarnou, também, a ideia de que a polícia, especialmente a militar, tinha legitimidade para matar e, dessa forma, "combater o crime".

Florisvaldo virou o Cabo Bruno também pelo fato de ele ser o único PM envolvido em mortes na zona sul daqueles anos de que nos lembramos do nome. Havia outros -por exemplo, pela morte dos rapazes da fábrica de vime, a Justiça condenou Bruno e mais dois ex-soldados.

A partir de 1983, quando Franco Montoro assumiu como governador eleito de São Paulo, as investigações do Serviço Reservado da PM levaram à expulsão de 20 soldados, cabos e sargentos envolvidos em 99 mortes acontecidas em dois anos.

Os comandantes que acobertaram esses crimes -talvez por convicção, talvez por impotência frente à escalada da criminalidade da época, talvez para proteger a imagem da corporação- foram também removidos.

Cabo Bruno morreu, dizem o advogado e seu cliente. Creio que não só eu deseje que o cidadão Florisvaldo leve a melhor vida que puder daqui para a frente. Morreram também a PM e o autoritarismo dos anos 1980. Tomara o Brasil não permita a volta deles nunca mais.

MÔNICA TEIXIERA, 57, é diretora da Univesp TV e apresentadora do programa "Legião Estrangeira". Foi repórter do "Fantástico", criou e dirigiu o" SBT Repórter" e apresentou o programa "Opinião Nacional"

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