São Paulo, quarta-feira, 01 de janeiro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Continuidade e mudança

ANTONIO BARROS DE CASTRO

Entre 1984 e 1986 defendi a idéia de que, após os tormentosos primeiros anos daquela década, a economia brasileira encontrava-se de novo preparada para crescer. Primeiramente, porque os resultados alcançados pelo 2º PND (Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento) haviam dotado o país de uma estrutura industrial robusta e atualizada. Além disso, porque a desvalorização de fevereiro de 1983 reforçava o direcionamento das empresas para as exportações e a substituição de importações. Por último, mas também importante, porque o estado das finanças públicas já havia sofrido substancial correção. Na sequência então visualizada, o saldo comercial acionaria a retomada do crescimento e o próprio crescimento criaria condições favoráveis à manutenção da inflação sob controle.
Os resultados obtidos pela economia brasileira de 1984 ao primeiro trimestre de 1987 confirmavam a hipótese por nós defendida, inicialmente recebida com bastante surpresa e muita hostilidade. A economia voltara a crescer ao seu ritmo histórico, próximo a 7% ao ano, levando o ministro Funaro a anunciar um crescimento japonês (outros eram os tempos) e uma inflação suíça.
Mas a macroeconomia do Plano Cruzado logo revelou sua fragilidade. E, do colapso do Cruzado em diante, o quadro desandou por completo. O aparelho produtivo do país, recentemente revigorado, mantinha-se intacto, mas a turbulência macroeconômica paralisava as decisões e incentivava a especulação, levando o país, por fim, à moratória. A década terminaria com um ministro pedindo aos agentes econômicos que "não fizessem marola"... Havíamos atingido a cota zero da esperança e da auto-estima. Seguiram-se 12 anos de muitas mudanças e crescimento quase nulo.
Relembrar esse triste passado é importante num momento em que se volta a discutir a retomada do crescimento. Houve uma nova e positiva mutação do lado da oferta (de natureza totalmente diversa da verificada na segunda metade dos anos 1970) e, sobretudo, ocorreram grandes avanços do ponto de vista macroeconômico. Infelizmente, contudo, mais uma vez não faltam ameaças. Desta vez, vai? Esta é, sem dúvida, uma questão central.
Para quem pretenda pensar a esse respeito, um cuidado preliminar consiste em não repetir o equívoco por mim cometido em 1984/6. Explico-me.
De 1971 em diante, o capitalismo tornou-se mais instável, o que veio a acentuar-se, ainda mais, nos anos 90. Em tais condições, quem avalie as chances de crescer de uma economia, a partir do estado de suas forças produtivas -ou da competitividade alcançada por suas empresas (com uma determinada taxa de cambio)-, corre o risco de errar feio. A macroeconomia adquiriu poder de veto sobre o crescimento. Isso é verdade até mesmo para a França, a Inglaterra, a Suécia e o Japão, como tem sido abundantemente comprovado nos últimos 20 anos. Com muito mais razão, isso passou a ser a dura realidade enfrentada pelas economias retardatárias -sobretudo aquelas que se permitiram acumular grandes dívidas.
Já houve um tempo em que o ministro da Fazenda que propusesse deter o crescimento da economia era ejetado do poder. Isso aconteceu com Gudin, com Lucas Lopes e com Simonsen. Agora não. Uma macroeconomia vista como bem comportada (e não há, aqui, regras universais) tornou-se precondição absoluta do crescimento. Assim sendo, não faz mais sentido esperar que o próprio crescimento permita (como no passado) solucionar problemas de natureza macroeconômica.
E aqui entra a democracia. Ela permite o surgimento e o fortalecimento de partidos e tendências que desenvolvem visões críticas acerca da condução dos problemas. É bem verdade que o fortalecimento da oposição pode, por algum tempo, dificultar a tomada de decisões. Mas tende também a evitar que a insatisfação extravase, assumindo formas violentas. E, sobretudo, facilita a transferência do poder para novos forças, capazes de renovar as esperanças. Essas são certamente necessárias, ali onde há que insistir no que está dando certo (ainda quando os frutos custem a aparecer) e, ao mesmo tempo, que ensaiar novas soluções.
Segundo Dani Rodrik, em excelente trabalho apresentado na conferência sobre "Developing Economies in the 21th Century" (Japão, janeiro de 2000), a flexibilidade assegurada pela democracia à Malásia e à Coréia revelou-se fundamental na combinação de continuidade e mudança que marcou a reação desses países à traumática crise asiática de 1997.
Feliz 2003.


Antonio Barros de Castro, 58, professor titular da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e ex-presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.


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