São Paulo, quarta-feira, 01 de maio de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

O dia da cidadania

PAULO RABELLO DE CASTRO

Comemora-se o 1º de Maio como uma espécie de "dia da cidadania" porque, nessa data, o cidadão pode substituir ação por reflexão. Poder parar, para refletir sobre a sua própria condição humana, só é um direito em organizações sociais avançadas ou que, pelo menos, admitem, no seu imaginário coletivo, tentar igualar as oportunidades de acesso.
A festa do 1º de Maio é uma forma de congregar a força dispersa do trabalho. A Força Sindical faz isso muito bem, ao reunir mais de 1 milhão de pessoas na praça, hoje.
Mas a reflexão não está ausente. Começou na segunda-feira, por meio de um notável "Encontro com os Presidenciáveis" reunindo trabalhadores, empresários, mídia e povo em geral, na mesma praça, para uma conversa sobre o futuro de cada um, de todos. O encontro, uma realização da Força Sindical com a colaboração do Instituto Atlântico e da Bovespa, buscou passar a cada um dos presidenciáveis uma agenda da cidadania, espelhada no roteiro de temas que as três instituições organizadoras pensaram em conjunto para o debate sucessivo com Ciro, Garotinho, Serra e Lula.
Esses senhores, que se habilitam à condição de maestro dos anseios da nação brasileira, também vieram expor suas reflexões e convicções. Por trás das muitas e acentuadas diferenças de estilo e de substância, as exposições revelaram um grau elevado e perigoso de improviso no discurso dos candidatos diante da grandeza dos desafios expostos à sua consideração.
Embora um resumo dos debates seja impraticável neste espaço, os assuntos que gritam e berram mais alto, pelo volume de perguntas da platéia paulista, são os da insegurança pessoal, da aposentadoria minguante e do desemprego crescente.
A brutalidade das ruas, que ceifa a vida de inocentes por hora e por minuto, espelha a convulsão social endêmica, em parte resultado dos assaltos econômicos deixados praticar -e ainda praticados- pelo governo contra as economias populares, seja pela omissão de autoridade, seja pelas interferências canhestras em benefício exclusivo da própria máquina pública.
Essa máquina devora, hoje, nada menos do que a terça parte de todos os rendimentos gerados neste país anualmente, sendo possível que a carga tributária atinja 35% da renda nacional em 2002. Ciro Gomes foi o único a tecer críticas ao assalto tributário. Mas essa dinheirama colossal de receitas fiscais, embora toda ela transformada em gastos públicos, é incapaz de satisfazer as demandas básicas da população, a começar pela insegurança absoluta dos cidadãos nas ruas, até dentro das casas. Não pode haver paradoxo de autoridade maior do que esse, de um poder público exemplar na taxação das rendas, cobrando impostos inclusive de um prato de comida, mas incapaz de manter índices minimamente aceitáveis de convivência pacífica na sociedade da qual ele extrai tudo.
Está mais do que claro ser o próprio Estado o autor da violência, cúmplice da anticidadania. Como pode ele, então, ser o inspirador de conquistas mais ambiciosas, ou preparar a nação para a competição no mundo do futuro e propiciar às gerações de hoje uma visão de suas possibilidades pessoais no futuro? Os candidatos à Presidência não passaram uma visão clara desse futuro. A ausência do amanhã, a equivocada (ou não) percepção do jovem de hoje, da inexistência ou impossibilidade de qualquer futuro, certamente opera em seu ânimo como um poderoso aliciador da sua decisão de contestar a disciplina da espera, de não mais resignar-se à rotina de um emprego, de preferir pular o muro da lei, na expectativa de encontrar algo melhor "do outro lado" da sua desesperança.
A distância dos governantes a esse grito de almas não poderia ser mais evidente. Sobram recursos financeiros, mas faltam recursos intelectuais e de planejamento para o governo lidar com o desafio da violência. Neste momento, o Estado brutal e voraz reivindica para si a renda de R$ 20 bilhões de uma CPMF cobrada sobre cada movimentação de cheques, por cima de toda a massa de tributos já por ele apropriada, sob o argumento de garantir sua própria segurança financeira ameaçada. Basta que façamos contas simples. A arrecadação anual da CPMF corresponde, sozinha, a R$ 120 por brasileiro. Isso representa R$ 600 reais por ano ou R$ 50 reais por mês, por família de cinco pessoas. Esse valor da CPMF seria uma cota capaz de sustentar uma guarda pessoal e comunitária, 24 horas por dia, para cada família brasileira. Mas onde está esse policiamento? Pelo contrário, a CPMF é sacada contra a população em geral, sem o benefício de contrapartidas evidenciáveis. Essa conta simples dá a dimensão do potencial de interferência do governo sobre a renda das pessoas e, ao mesmo tempo, o tremendo descompasso entre o montante de recursos postos nas mãos do poder público e o seu efetivo retorno em serviços prestados à comunidade.
O próprio Estado, como inspirador de violência e produtor de insegurança, parece ser a reflexão que falta fazer no dia da cidadania. A crítica do Estado que não protege, mas assalta, foi a grande lacuna no debate do "Encontro com os Presidenciáveis", razão pela qual continua alto o risco de frustração com o próximo governante, seja ele quem for.


Paulo Rabello de Castro, 53, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico (RJ). Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.


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