São Paulo, quinta, 1 de outubro de 1998

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LUÍS NASSIF

A novela dos déficits gêmeos

Há semanas, por meio da coluna, venho manifestado minha absoluta incapacidade de entender essa lógica convencional do mercado de que a crise externa é puramente fiscal e que sua saída passa exclusivamente pela obtenção de um superávit fiscal de 3,5% do PIB, como precondição para estabilizar a dívida interna, reduzir os juros e voltar a crescer.
Assim como não consegui entender essa simplificação generalizada do mercado, de que, eliminando-se o déficit público, estará equacionada a necessidade de tomar dólares para fechar as contas externas.
Finalmente, ainda não entendi como gerar superávit fiscal com a economia em recessão.
Déficit externo surge quando há processos de aumento do déficit público, que geram uma demanda interna artificial. Essa demanda -por bens e por recursos- acaba suprida por capitais externos, gerando desequilíbrios nas contas externas.
A partir desse diagnóstico, o caminho adotado consistia em forçar o país a gerar um forte superávit fiscal. O que interessava não era o superávit em si, mas o desaquecimento da atividade econômica decorrente, permitindo um relativo equilíbrio na balança comercial, pela queda das importações e aumento das exportações.
Nessa análise mecânica -de uma economia operando a plena capacidade- o fator de desequilíbrio sempre era o déficit público.

Fator de desequilíbrio
No caso brasileiro atual, claramente o fator de desequilíbrio foi a política cambial implementada no início do Real. O brasileiro ficou artificialmente mais "rico" porque, com o real valorizado, passou a comprar quantidade maior de bens, e os saldos comerciais transformaram-se em déficits.
Hoje em dia, o déficit externo não é decorrente de excesso de demanda (só faltava isso, com uma economia próxima à recessão) nem o déficit público, fruto de excesso de gastos do governo (já que as principais contas públicas, com exceção da Previdência, estão relativamente equilibradas).
No primeiro caso, da incapacidade do país em reduzir sua demanda por dólares (mesmo em um quadro recessivo). No segundo, em gerar reais para pagar o serviço da dívida pública, que precisou ser aumentada justamente para atrair os dólares. Tudo por conta dos desequilíbrios provocados pela política cambial.

Confusão gêmea
É aí que entra essa confusão monumental entre os déficits gêmeos.
1) Há um rombo nas contas externas, que precisa ser financiado.
2) O Banco Central enxuga o crédito da economia e eleva as taxas de juros, induzindo o setor privado a trazer dólares para o Brasil.
3) Quando os dólares entram no país, o BC emite reais para comprá-los (e mantê-los nas reservas), depois vende títulos públicos para enxugar esses reais adicionais do mercado. Ou seja, os dólares que entram no país, e vão engordar as reservas, transformam-se em dívida pública.
4) Se o governo começar a gerar superávits fiscais, ele terá reais em caixa, com os quais irá resgatar parte dos seus títulos ou pagar os juros. Aí o investidor estrangeiro recebe os reais. Mas terá que irá ao mercado adquirir os dólares que serão remetidos ao seu pais de origem. Só que, para isso, terá que haver dólares no país.
Portanto a geração de superávits fiscais não prescinde, em hipótese alguma, da geração de superávits externos. E ambos são processos distintos. A não ser que (sem mexer no câmbio) se pense em um ajuste fiscal tão agudo, que leve a uma recessão tão profunda, que reduza as importações e gere excedentes para exportações, pela virtual paralisação do mercado interno. Os limites políticos a essa medida são evidentes.
E nenhuma agência internacional vai providenciar financiamentos ao país, colchões de liquidez, ou coisa que o valha, se não houver garantias de que as duas variáveis estarão sendo equacionadas.

Nobel perplexo
O último artigo do economista Paul Krugman, "Tempos de heresia" -publicado no "Estadão" de ontem-, é um libelo contra essa unanimidade extraordinariamente descosturada da realidade que tomou conta das análises financeiras a respeito da crise.
* "Desde quando um déficit orçamentário precisa de uma recessão (que, por si só, dificulta muito mais sua redução)?"
* "Como se explica que países latino-americanos adotem políticas econômicas perversas, elevando os juros e reduzindo os gastos, apesar da desaceleração do crescimento ou da recessão evidente?"
* "Estou realmente chocado porque um número maior de meus colegas não vê dessa forma ou não compartilha de minha opinião de que é preciso encontrar com urgência um novo meio de combater a peste."
* "Todo economista de mente arejada, especialista ou articulador de política econômica deve estar disposto a admitir que a sabedoria convencional está se saindo muito mal e existe hoje a ótima chance de as chocantes heresias atuais tornarem-se o simples bom senso de amanhã."
Não significa que toda fórmula anticonvencional seja eficaz. Mas significa que as fórmulas convencionais tornaram-se ineficazes.

E-mail: lnassif@uol.com.br



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