São Paulo, quinta, 1 de outubro de 1998

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Processo envolvia cúpula econômica

FREDERICO VASCONCELOS
da Reportagem Local

"Eu achava que era impossível eles me deixarem quebrar", disse Assis Paim Cunha, 70, principal personagem do caso Coroa-Brastel, ao ser entrevistado, em janeiro último, em seu escritório, num velho e decadente edifício no centro do Rio de Janeiro.
"Eles", no caso, eram as três mais importantes autoridades econômicas do governo federal. Como num longo abraço de afogado, desde 1983 Paim tentava provar que afundou por causa de Antonio Delfim Netto, Ernane Galvêas e Carlos Geraldo Langoni, respectivamente ministros do Planejamento e da Fazenda e presidente do Banco Central no governo João Baptista Figueiredo (1979-1985).
O caso Coroa-Brastel é emblemático dos acordos a portas fechadas, típicos dos governos militares, e da omissão em relação ao desvio de dinheiro público.
Socorrido por vultosos empréstimos da Caixa Econômica Federal e do Banco Central, Paim teve fôlego para aplicar -durante muito tempo- sucessivos golpes em investidores. "A inspeção era frouxa", dizia Paim.

Títulos "frios"
No início dos anos 80, a Coroa S/A Crédito, Financiamento e Investimentos, financeira da qual Paim era um dos sócios, inundou o mercado com títulos "frios", letras de câmbio (título emitido em contrapartida a um crédito ao consumidor) sem lastro. Ou seja, que não correspondiam a operações de financiamento ao consumidor das lojas Brastel, rede de varejo de propriedade de Paim.
A financeira de Paim emitia títulos muito além do registro na contabilidade oficial e oferecia uma remuneração muito acima da média do mercado.
Quando a financeira quebrou, os proprietários desses títulos -pequenos investidores, em sua maioria, e empresas e fornecedores- não puderam resgatá-los.
Paim esperava que todos acreditassem que essa emissão sem cobertura era feita com aprovação implícita das autoridades, em reciprocidade a favores prestados ao governo.
É verdade que o BC não parecia interessado em conter o giro da máquina impressora de Paim, e o banco oficial já foi condenado a indenizar quatro investidores, por omissão da fiscalização. Mas a Justiça decidiu que Delfim, Galvêas e Langoni não cometeram crime.
A versão de Paim é que os problemas surgiram quando ele foi induzido por Delfim, Galvêas e Langoni a absorver a corretora carioca Laureano, para evitar uma intervenção naquela instituição.
Trabalhava na corretora um filho do chefe do Gabinete Civil, general Golbery do Couto e Silva. "O dono do Brasil era Golbery, e todo mundo se curvava", diz.
A versão oficial, porém, é que a absorção tinha certa lógica, pois a financeira de Paim era a principal credora da corretora Laureano. Paim alega que essa dívida tem origem em empréstimo feito pela Coroa à Laureano por solicitação de Delfim, Galvêas e Langoni. Aparentemente, Paim quebrou porque apostou na promessa de que seriam criados "mecanismos" que viabilizariam a absorção da Laureano.

Noite do acerto
Na noite de 9 de fevereiro, Paim foi chamado por Delfim a Brasília, quando foi decidida a compra da corretora Laureano.
Paim emitiu cheque em valor correspondente, hoje, a R$ 1,5 milhão, para compra do título patrimonial da corretora, e recebeu empréstimo em valor igual do BC para cobrir os compromissos vencidos da Laureano. Quatro dias depois, o BC concedeu nova assistência financeira de Cr$ 30 milhões (R$ 884 mil) para a Coroa, que transferiu os recursos à corretora Laureano (contrariando a legislação).
Paim diz que não tinha idéia dos rombos que encontraria. E emitiu letras de câmbio sem lastro, no total de Cr$ 600 milhões (ou R$ 13,9 milhões em moeda atual).
Ele diz que Delfim determinou que procurasse a Caixa Econômica Federal, para tentar um empréstimo de Cr$ 2,5 bilhões (R$ 58 milhões, hoje), para reforço de capital de giro. A CEF exigiu apresentação de um projeto para liberar o empréstimo e aprovou em apenas 24 horas a operação milionária com Paim, como "projeto de interesse governamental". Os recursos foram liberados em oito dias.
O "projeto" (entregue dois meses depois, segundo Paim) previa a aplicação dos recursos na expansão das lojas Brastel e no programa "O sonho do João", para promover a moradia e alimentação barata para classes mais pobres.
Parte do empréstimo serviu para quitar débitos da Laureano com o Banco do Brasil e com o Banespa; outra parte (R$ 17,9 milhões atuais) foi utilizada para pagamentos imediatos pela Coroa.

Ministros denunciados
Em outubro de 1988, o então procurador-geral da República, José Paulo Sepúlveda Pertence, denunciou os ex-ministros Delfim e Galvêas ao Supremo Tribunal Federal por peculato (apropriação ou desvio de dinheiro público em benefício próprio ou de terceiros) e Paim por estelionato (obtenção de vantagem ilícita mediante artifícios ou fraude), falsidade ideológica e peculato.
A peça de acusação afirma que Delfim e Galvêas, "detendo o controle total da política econômico-financeira da administração pública federal, conscientemente desviaram para terceiro (Assis Paim Cunha) dinheiro público, por cuja guarda e correta gestão deveriam zelar".
Langoni não foi denunciado. Contra ele, o MPF apurou apenas "séria infração funcional, de péssimo administrador da coisa pública, e nada além".
Em 1994, o STF rejeitou a denúncia contra Galvêas, "tendo em vista haverem os elementos constantes do inquérito propiciado convicção segura de que não cometeu ele o crime que lhe foi atribuído".
Delfim, que tinha ficado fora do processo por causa da imunidade parlamentar -pois o Congresso não aprovara a licença para que fosse a julgamento-, obteve depois a extensão da decisão que beneficiou seu colega da Fazenda.
Na esfera administrativa, o único punido foi o ex-diretor de fiscalização do mercado de capitais do BC, Deli Borges, demitido sumariamente, em julho de 1984, depois de sindicância interna.

Prisão domiciliar
Ao todo, Paim respondeu a oito processos em varas estaduais. Várias ações prescreveram e ele havia sido condenado apenas a dois anos de prisão, sob a acusação de passar cheques sem fundos. Mas não chegou a cumprir pena em cadeia. A ordem de prisão encontrou o empresário num hospital, vítima de acidente automobilístico, com o fêmur fraturado. A pena de reclusão foi transformada em prisão domiciliar (trabalhava durante o dia e era obrigado a ficar em casa à noite).
Um dos executivos do grupo, Fernando Gebara, ficou preso em cela comum. Melhor sorte teve Abram Zylbersztajn, sócio minoritário, que não chegou a ser indiciado. Abram entrou na história nos anos 60, quando sua empresa, a Cobrás, se fundiu com a Telegel, de Paim, formando a Brastel.
Abram é pai do diretor-geral da ANP (Agência Nacional do Petróleo), David Zylbersztajn, e sogro de Beatriz, filha do presidente Fernando Henrique Cardoso.
Abram disse à Folha que cuidava apenas do crediário e representava o grupo em eventos sociais. Ele disse que, logo no início do caso, a promotoria constatou que ele não tinha envolvimento com os atos de Paim. Laudo pericial na falência da Coroa cita que Abram e seu sócio Paim emitiram letras de câmbio sem lastro.
Há quatro anos, Abram passou dois dias fora de circulação, aguardando liminar que o livraria de ordem de prisão, numa decisão judicial envolvendo a Brastel.
Abram e sua mulher avalizaram a operação de Paim com a Caixa Econômica Federal.
Ele elogia o fato de Paim sempre ter assumido a responsabilidade. E Paim se penitencia de ter "tornado Abram e a mulher co-responsáveis por uma fantástica dívida, com a qual nada tiveram a ver", diz.



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