São Paulo, domingo, 02 de maio de 2004

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ARTIGO

Só gasto público permite retomada

RICARDO CARNEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A incapacidade da política econômica de estimular o crescimento é, cada vez mais, indisfarçável. A despeito disso, as propostas de mudança têm sido sistematicamente desqualificadas. Fora do modelo ortodoxo, nada parece possível ou viável. A essa perspectiva é necessário contrapor outra que advoga não só a premência mas a viabilidade da mudança da política econômica. Numa ótica de curto prazo, as modificações se dariam na sua flexibilização, enfatizando seu caráter anticíclico.
Sob o efeito das políticas ora em curso, o desempenho da economia brasileira tem sido pífio. Mesmo a tão louvada estabilidade de preços, ao assentar-se num primeiro momento na sobreutilização da âncora cambial e num segundo numa precária política de metas de inflação, terminou por produzir a instabilidade macroeconômica ao ampliar a dívida pública interna e impulsionar um novo ciclo de endividamento externo, em parte por meio da atração de capitais de curto prazo.
Na atualidade, a despeito do cenário internacional favorável, a economia encontra-se deprimida. A recuperação dos investimentos com base nos setores exportadores e na ampliação episódica do consumo de bens duráveis não é suficiente para assegurar o crescimento. Setores de grande peso, como os que produzem para as camadas de baixa e média renda, ou segmentos intensivos em construção civil, com grande dependência do gasto público, têm regredido.

Poder de compra
O baixo crescimento do nível de ocupação, a contração no rendimento real e a mudança de preços relativos a favor dos serviços de utilidade pública diminuíram o poder de compra das famílias e reduziram sua capacidade de endividamento. A parcela do consumo que depende do crédito tem seu aumento impedido também pelos elevados juros e pela insegurança do emprego. Prova disso é o relativo fracasso da política de crédito "favorecido" posta em prática pelo governo, cuja demanda ficou muito abaixo das disponibilidades.
Nesse quadro, dificilmente pode-se presumir uma ampliação do gasto privado em consumo e investimento capaz de fazer a renda voltar a crescer. Dada a política fiscal restritiva, a única fonte de dinamismo da economia tem sido as exportações líquidas. Mas elas não têm sido capazes de impulsionar o crescimento, porque a economia brasileira é relativamente fechada e o saldo comercial representou só 3,5% da demanda nominal em 2003.
Nesse ambiente, a retomada só ocorrerá por meio de uma ação anticíclica, tanto por meio do gasto direto do governo quanto pelo fomento à atividade privada -incluindo preços macroeconômicos mais favoráveis, o que supõe a estabilização do câmbio e a redução continuada dos juros.
O cenário internacional favorável dos últimos meses não deve obscurecer as dificuldades de sua sustentação. É previsível sua inversão, que implique tanto uma redução da liquidez quanto uma queda de preços das commodities. Há dois fatores essenciais de preservação do quadro externo: a trajetória dos juros dos EUA e o crescimento da China, ambos insustentáveis a médio prazo.
A inversão do ciclo de liquidez, ancorada numa ampliação da aversão ao risco, deve ocorrer antes mesmo da elevação dos juros nos EUA. A expectativa de elevação das taxas do Fed determinou o desmonte das operações especulativas e já atinge os ativos financeiros de maior risco. Como os títulos brasileiros pertencem ao segmento de alto risco, tudo indica que o financiamento externo para a economia brasileira, caracterizado por maior volatilidade, deverá se retrair mais rápido e com mais intensidade.
O aumento de preços das commodities, que contribui para o crescimento das exportações, reflete a sincronização da recuperação global, o peso do crescimento da China no comércio global e o baixo custo de carregamento dos estoques. É improvável que a taxa de crescimento da China se mantenha no ritmo atual, dados os gargalos na infra-estrutura. Por sua vez, a alta dos juros vai desinflar o valor das commodities ao reduzir o componente especulativo da elevação de preços.
É necessário estar preparado para essas mudanças, evitando novas apreciações da moeda nacional e ampliando significativamente as reservas internacionais. Nesse particular, a condução da política macroeconômica foi bastante equivocada. Em 2003, ante um significativo afluxo de capitais e inversão da conta de transações correntes, os juros ficaram em patamar elevado por um tempo muito longo. Houve uma desaceleração mais rápida da inflação, mas se permitiu a valorização do real e se desperdiçou a oportunidade de uma acumulação mais substantiva de reservas.

Regime inflexível
O regime de metas de inflação, de difícil execução numa economia sujeita a choques de oferta, tem sido operado de forma inflexível. A política antiinflacionária tem se convertido numa política anticrescimento. Um exemplo é o ano de 2004. É indiscutível que os deslocamentos da inflação foram comandados por choques de oferta, em particular o de commodities. Ou seja, houve um processo de mudança de preços relativos com impactos no nível geral de preços. A tentativa de impedir ou amenizar essa mudança, mediante a sustentação do juro em nível elevado, resultou em sacrifícios do produto e do emprego.
O deslocamento da meta do centro para o teto seria suficiente para acomodar as mudanças assinaladas acima, sem comprometer a âncora nominal e a eficácia do regime. No quadro atual da economia de baixo crescimento do emprego e desindexação dos salários, é improvável uma aceleração da inflação. Por sua vez, é imprescindível eliminar duas fontes essenciais de pressão sobre os preços: a volatilidade cambial e a indexação dos preços administrados por uma variável da taxa de câmbio. Isso reduziria substancialmente os impactos dos choques de oferta sobre a inflação, liberando a taxa de juros.

Endividamento
Outro aspecto da mudança de curto prazo diz respeito ao gasto público. O objetivo central é ampliar a capacidade de investimento e conseqüentemente de endividamento do segmento empresarial na área de infra-estrutura econômica e social. Para tanto, é necessário retirar esse segmento do cômputo do superávit primário. Essa medida encontra justificativa no retorno propiciado pelos investimentos. Ou seja, no caso do gasto empresarial, a formação de novos ativos gera fluxo de caixa que assegura a futura amortização da dívida.
A alegação de que essa medida implicaria uma elevação da relação dívida/PIB ao reduzir o superávit primário não procede. A dívida do setor público tem a sua dinâmica determinada por variáveis patrimoniais (taxa de câmbio e esqueletos), financeiras (juros) e correntes (crescimento do PIB e superávit primário). A combinação de estabilidade cambial com redução dos juros reais, associados à retomada do crescimento, implicaria uma trajetória de declínio da relação dívida/PIB, apesar da redução do saldo primário.
Outra medida de importância seria o fortalecimento da função de fomento do sistema financeiro público por meio da ampliação do volume e redução do custo do crédito. Essa reorientação envolve medidas específicas, mas principalmente a decisão política de enfatizar o caráter público dessas instituições ao retirar-lhes o caráter privado, tanto operacional quanto no que diz respeito às exigências de rentabilidade. Nesse campo outras medidas serão necessárias, como a eliminação da transferência ao Tesouro de parte dos lucros dessas instituições financeiras com o propósito de compor o superávit primário, prática que tem reduzido a ampliação dos seus patrimônios líquidos e conseqüentemente a capacidade de empréstimo.
Das possíveis objeções a esse conjunto de políticas, uma merece consideração particular: o seu timing. É possível que a inversão do ciclo internacional acelere nos próximos meses, tornando obsoleta a discussão dessas medidas e deslocando o debate das opções para outro plano mais dramático.


Ricardo Carneiro é professor do Instituto de Economia e Diretor do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da Unicamp.


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