São Paulo, terça-feira, 02 de maio de 2006

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TENSÃO ENTRE VIZINHOS/ANÁLISE

É o 1º ato de esquerda desde a queda do Muro de Berlim

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

O presidente Evo Morales praticou ontem a primeira iniciativa genuinamente de esquerda na América Latina (talvez no mundo) desde que o Muro de Berlim desabou em 1989.
Nem seu amigo Hugo Chávez, da Venezuela, chegou até agora tão longe quanto o primeiro presidente de origem indígena da Bolívia, ao nacionalizar os hidrocarbonetos. Até porque Chávez sabe perfeitamente que o grande mercado para o petróleo da Venezuela sempre foram os Estados Unidos. Continua sendo apesar de toda a incendiária retórica antinorte-americana.
Como se já não bastasse a ousadia de tomar uma medida de esquerda, em vez de apenas dizer que é de esquerda, Evo cercou seu gesto de toda uma carga de simbolismo: seu "decreto supremo" sobre a nacionalização (que significa estatização) do gás foi assinado depois de uma viagem ao único centro revolucionário restante no planeta, a pequena ilha de Cuba, para uma reunião com os dois outros mandatários que ainda falam uma linguagem de esquerda (o já citado Chávez e Fidel Castro).
A linguagem usada é, de resto, típica dos anos 70: "Acabou o saque de nossos recursos naturais por empresas estrangeiras", disparou Evo.
Por fim, o fez no Dia do Trabalho, que, embora não seja originariamente uma data da esquerda, acabou sendo com o tempo mais associada a ela.
O gesto do presidente da Bolívia carrega ainda uma suprema ironia: atinge uma companhia estatal brasileira, a Petrobras, o maior orgulho da esquerda local (embora não apenas da esquerda), justamente no período presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, que se supunha ser o primeiro esquerdista a se eleger no Brasil, mas acabou fazendo uma gestão ultraconservadora.
Tão conservadora que Evo não teve nenhum cuidado em excluir Lula da "santíssima trindade antiimperalista", a que se reuniu anteontem em Havana. "Somos três para defender o povo latino-americano", disse o boliviano.
Para salgar a ferida, Evo Morales escolheu para a cerimônia de ontem o campo de San Alberto, explorado justamente pela Petrobras.
Mas a defenestração de Lula da "santíssima trindade" é um fato menor diante do salto no escuro que deu ontem Evo Morales.
Antes mesmo de que fosse efetivada uma nacionalização que foi além do que esperavam os analistas internacionais e mesmo os locais, o comentarista peruano Mirko Lauer dizia ao jornal "La República", de La Paz, que Evo "se convertera em um homem-bomba regional".
É um pouco de exagero, mas não muito. Uma coisa é Chávez comprar confusões sucessivas, ora com o mexicano Vicente Fox, ora com o colombiano Álvaro Uribe, agora com o peruano Alan García (atraindo para a arena do bate-boca o presidente Alejandro Toledo).
Torneios de oratória são uma constante no rico folclore político-diplomático da América Latina.
Outra coisa, de fato do tipo homem-bomba, é mexer no bolso de companhias de países vizinhos e dos não tão vizinhos, mas, de todo modo, com laços políticos com a região, como é o caso da Espanha, que se empenha em dar caráter mais que declaratório à Comunidade Ibero-Americana.
A Repsol espanhola é, como a Petrobras, uma das vítimas da nacionalização, para não mencionar as britânicas British Gas e British Petroleum e a franco-belga TotalFinaElf.
Não custa lembrar que, em duas semanas mais, Evo Morales é um dos convidados para a Cúpula União Européia-América Latina/ Caribe, a realizar-se em Viena. Não é difícil imaginar o tamanho do homem-bomba em que se transformou, ao atingir interesses de pelo menos cinco dos outros convidados.

Radicalização
Daqui para a frente, o lógico será imaginar uma radicalização ainda maior. Evo estará pressionado por dois eventos. Em junho, realiza-se o Primeiro Congresso de Movimentos e Organizações Sociais. Será em El Alto (o subúrbio de La Paz que foi o epicentro das manifestações que derrubaram os presidentes Sánchez de Losada e Carlos Mesa e estiveram na origem das eleições que levaram Evo ao poder).
A pauta é carregadíssima de reivindicações nacionalistas e esquerdizantes.
Depois (2 de julho) elege-se a Assembléia Constituinte que Evo pretende transformar em palco para a "refundação" da Bolívia, por meio de uma mudança radical nas estruturas estatais, administrativas, jurídicas e políticas.
Nessas circunstâncias, convém prestar atenção ao que escreve Francisco Fernández Buey, boliviano que leciona filosofia na Universidade Pompeu Fabra (Barcelona), quando diz que "o que se começa a chamar de evismo é conseqüência de uma intensa mobilização social e não pode ser identificado em absoluto com outros processos latino-americanos próximos ao cesarismo e ao caudilhismo".


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