|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TENSÃO ENTRE VIZINHOS/ANÁLISE
É o 1º ato de esquerda desde a queda do Muro de Berlim
CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA
O presidente Evo Morales praticou ontem a primeira iniciativa
genuinamente de esquerda na
América Latina (talvez no mundo) desde que o Muro de Berlim
desabou em 1989.
Nem seu amigo Hugo Chávez,
da Venezuela, chegou até agora
tão longe quanto o primeiro presidente de origem indígena da Bolívia, ao nacionalizar os hidrocarbonetos. Até porque Chávez sabe
perfeitamente que o grande mercado para o petróleo da Venezuela sempre foram os Estados Unidos. Continua sendo apesar de toda a incendiária retórica antinorte-americana.
Como se já não bastasse a ousadia de tomar uma medida de esquerda, em vez de apenas dizer
que é de esquerda, Evo cercou seu
gesto de toda uma carga de simbolismo: seu "decreto supremo"
sobre a nacionalização (que significa estatização) do gás foi assinado depois de uma viagem ao único centro revolucionário restante
no planeta, a pequena ilha de Cuba, para uma reunião com os dois
outros mandatários que ainda falam uma linguagem de esquerda
(o já citado Chávez e Fidel Castro).
A linguagem usada é, de resto,
típica dos anos 70: "Acabou o saque de nossos recursos naturais
por empresas estrangeiras", disparou Evo.
Por fim, o fez no Dia do Trabalho, que, embora não seja originariamente uma data da esquerda,
acabou sendo com o tempo mais
associada a ela.
O gesto do presidente da Bolívia
carrega ainda uma suprema ironia: atinge uma companhia estatal brasileira, a Petrobras, o maior
orgulho da esquerda local (embora não apenas da esquerda), justamente no período presidencial de
Luiz Inácio Lula da Silva, que se
supunha ser o primeiro esquerdista a se eleger no Brasil, mas
acabou fazendo uma gestão ultraconservadora.
Tão conservadora que Evo não
teve nenhum cuidado em excluir
Lula da "santíssima trindade antiimperalista", a que se reuniu anteontem em Havana. "Somos três
para defender o povo latino-americano", disse o boliviano.
Para salgar a ferida, Evo Morales escolheu para a cerimônia de
ontem o campo de San Alberto,
explorado justamente pela Petrobras.
Mas a defenestração de Lula da
"santíssima trindade" é um fato
menor diante do salto no escuro
que deu ontem Evo Morales.
Antes mesmo de que fosse efetivada uma nacionalização que foi
além do que esperavam os analistas internacionais e mesmo os locais, o comentarista peruano Mirko Lauer dizia ao jornal "La República", de La Paz, que Evo "se convertera em um homem-bomba
regional".
É um pouco de exagero, mas
não muito. Uma coisa é Chávez
comprar confusões sucessivas,
ora com o mexicano Vicente Fox,
ora com o colombiano Álvaro
Uribe, agora com o peruano Alan
García (atraindo para a arena do
bate-boca o presidente Alejandro
Toledo).
Torneios de oratória são uma
constante no rico folclore político-diplomático da América Latina.
Outra coisa, de fato do tipo homem-bomba, é mexer no bolso
de companhias de países vizinhos
e dos não tão vizinhos, mas, de todo modo, com laços políticos com
a região, como é o caso da Espanha, que se empenha em dar caráter mais que declaratório à Comunidade Ibero-Americana.
A Repsol espanhola é, como a
Petrobras, uma das vítimas da nacionalização, para não mencionar
as britânicas British Gas e British
Petroleum e a franco-belga TotalFinaElf.
Não custa lembrar que, em duas
semanas mais, Evo Morales é um
dos convidados para a Cúpula
União Européia-América Latina/
Caribe, a realizar-se em Viena.
Não é difícil imaginar o tamanho
do homem-bomba em que se
transformou, ao atingir interesses
de pelo menos cinco dos outros
convidados.
Radicalização
Daqui para a frente, o lógico será imaginar uma radicalização
ainda maior. Evo estará pressionado por dois eventos. Em junho,
realiza-se o Primeiro Congresso
de Movimentos e Organizações
Sociais. Será em El Alto (o subúrbio de La Paz que foi o epicentro
das manifestações que derrubaram os presidentes Sánchez de
Losada e Carlos Mesa e estiveram
na origem das eleições que levaram Evo ao poder).
A pauta é carregadíssima de reivindicações nacionalistas e esquerdizantes.
Depois (2 de julho) elege-se a
Assembléia Constituinte que Evo
pretende transformar em palco
para a "refundação" da Bolívia,
por meio de uma mudança radical nas estruturas estatais, administrativas, jurídicas e políticas.
Nessas circunstâncias, convém
prestar atenção ao que escreve
Francisco Fernández Buey, boliviano que leciona filosofia na Universidade Pompeu Fabra (Barcelona), quando diz que "o que se
começa a chamar de evismo é
conseqüência de uma intensa
mobilização social e não pode ser
identificado em absoluto com outros processos latino-americanos
próximos ao cesarismo e ao caudilhismo".
Texto Anterior: Luís Nassif: A Petrobras e a Bolívia Próximo Texto: Saiba mais: Nacionalização não é novidade no continente Índice
|