São Paulo, terça-feira, 02 de junho de 2009

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ARTIGO

GM é espelho para os EUA

ROBERT REICH
ESPECIAL PARA O "FINANCIAL TIMES"

COMO PRESIDENTE da General Motors quando Eisenhower o convidou para se tornar secretário da Defesa, em 1953, "Engine Charlie" Wilson expressou em sua audiência de confirmação diante do Senado uma opinião que era comum, então. Questionado se seria capaz de tomar uma decisão adversa à GM, para servir aos interesses dos EUA, ele respondeu que sim, poderia.
Depois, reassegurou os senadores de que um conflito como esse jamais surgiria. "Não consigo imaginar uma situação em que isso acontecesse, porque há anos penso que aquilo que é bom para o país é bom para a GM, e vice-versa. Nossa empresa é grande demais. Ela acompanha o bem-estar do país."
Wilson estava exagerando, mas não muito. Na época, o destino da GM estava inextricavelmente ligado ao da nação. Em 1953, a GM era o maior grupo industrial do mundo, um símbolo do poderio americano. A empresa respondia por 3% do PIB do país. Ela era também a maior empregadora dos EUA e pagava aos seus operários sólidos salários de classe média, com benefícios generosos.
Hoje, a Wal-Mart é o maior empregador dos EUA. A Toyota é a maior montadora de automóveis, e a GM pediu concordata. E as reconfortantes palavras de Wilson em 1953 agora ganharam um significado invertido e irônico. Haverá pouca diferença entre aquilo que é bom para os EUA e para a GM, porque a montadora passará a ser controlada pelos contribuintes norte-americanos.

Percurso de queda
Mas por que os contribuintes norte-americanos desejariam ser donos da GM atual? Certamente não porque as ações prometem retornos elevados quando a economia se recuperar. A GM está em percurso de queda há anos. Nos anos 60, o defensor dos consumidores Ralph Nader revelou que os carros da montadora eram inseguros. Na década de 70, os produtores de petróleo do Oriente Médio provaram que seus carros gastavam combustível demais. Nos anos 80, as montadoras de automóveis japonesas os expuseram como pouco confiáveis e excessivamente caros. Muitos dos norte-americanos mais jovens jamais compraram um carro da GM nem pensariam fazê-lo. Mas a recuperação do valor investido não pode ser o principal objetivo do resgate. Presumivelmente, o motivo é servir a um propósito público mais elevado. Mas o objetivo não é óbvio.
A meta não pode ser preservar empregos na GM, porque o Tesouro dos EUA sinalizou que a empresa precisa se enxugar se deseja receber o dinheiro.
O propósito não pode ser criar uma empresa nova, enxuta e livre de dívidas que um dia possa propiciar lucros. É isso que o setor privado deve realizar por sua conta e o que uma reorganização em concordata faria.
E o propósito do resgate tampouco pode ser criar uma nova geração de veículos que utilizem combustíveis de forma mais eficiente. O Congresso já ofereceu verbas para tanto às montadoras. Além disso, o Tesouro afirmou que não tem interesse em ser um investidor ativo ou dizer à indústria que carros produzir.
O único propósito prático que posso imaginar para o resgate é desacelerar o declínio da GM a fim de oferecer tempo suficiente a trabalhadores, fornecedores, comerciantes e comunidades que dependem da GM para que se acomodem à extinção da companhia. Mas, se é esse o objetivo, certamente deve haver maneiras melhores de alocar bilhões de dólares do que utilizar o dinheiro para adquirir a GM. Os fundos poderiam ser gastos de modo mais produtivo para ajudar a região centro-oeste dos EUA a diversificar sua economia e reduzir sua dependência da indústria automobilística.
Mas os políticos norte-americanos não ousam falar abertamente sobre ajuste industrial porque o público não deseja ouvir a respeito. Um forte eleitorado deseja preservar os empregos e comunidades existentes tal qual estão, independentemente do custo que isso venha a ter para o público. Outro grupo igualmente poderoso deseja permitir que os mercados exercitem sua vontade, a despeito dos custos sociais de curto prazo que o processo possa acarretar.

Dois eleitorados
Assim, em certo sentido o governo Obama está pagando bilhões de dólares para comprar a aquiescência de ambos os eleitorados. Está dizendo ao primeiro grupo que os empregos e as comunidades que dependem da GM poderão ser mais preservados devido ao resgate; e ao segundo que os contribuintes e credores serão compensados por isso. Mas não está dizendo toda a verdade a ninguém. A GM terminará por desaparecer, um dia. O resgate tem o objetivo de prover à economia tempo suficiente para absorver o golpe.
Por trás de tudo isso existe o crescente temor público, do qual o fim da GM é uma parte pequena mas reveladora. Meio século atrás, a prosperidade da classe média norte-americana era um dos grandes triunfos do capitalismo. Quando Wilson deixou a GM, quase metade das famílias dos EUA tinha rendas que se enquadravam à categoria média. A maioria dessas famílias era encabeçada não por profissionais liberais ou executivos, mas sim por operários especializados e semiespecializados. Os empregos eram sólidos, e os benefícios de saúde, seguros. Os norte-americanos estavam se tornando mais iguais em termos econômicos.
Mas, começando três décadas atrás, essas tendências mudaram. Os empregos que não requerem diplomas universitários para a classe média estão desaparecendo. A segurança no emprego é coisa do passado. E a nação se tornou mais desigual. A GM era um modelo de segurança econômica e de avanço na prosperidade. Seu declínio é um espelho para o desaparecimento de ambas as coisas.
Os contribuintes de classe média se preocupam com a possibilidade de que resgatar empresas como a GM seja inviável. Mas também se preocupam com os empregos que não podem perder. O édito de Wilson também foi virado de cabeça para baixo: de muitas maneiras, aquilo que foi ruim para a GM se provou ruim para boa parte dos EUA.


ROBERT REICH foi secretário do Trabalho dos EUA e é professor de administração pública na Universidade da Califórnia em Berkeley.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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