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OPINIÃO ECONÔMICA
O homem que foi Quinta-Feira
RUBENS RICUPERO
Desde que começou a caça a
essa misteriosa organização
Al Qaeda, não me sai da cabeça o
livro escrito por Chesterton em
1908. Estava-se também em fase
de paranóia, só que o bicho-papão era o terrorismo anarquista.
A novela é uma pequena obra-prima de humor e "nonsense"
(não traduzo porque os correspondentes em português não captam o sentido da palavra). Um
agente da Scotland Yard é instruído a infiltrar-se no conselho
supremo que dirige os sinistros
desígnios do anarquismo, composto de sete personalidades clandestinas, que atendem, cada
uma, pelo nome de um dos dias
da semana. Tendo conseguido
eleger-se como Quinta-Feira, o
nosso herói descobre aos poucos
que os demais dirigentes são todos, salvo um, também agentes
infiltrados. A exceção é Domingo,
o chefe dos chefes. No rocambolesco e inquietante capítulo final, revela-se que Domingo não é outro
senão o superintendente da Scotland Yard!
Amante do paradoxo, o católico
Chesterton havia escrito que a fé e
o "nonsense" eram "as duas supremas afirmações simbólicas da
verdade". Não quero levar longe
demais a comparação entre a trama da ficção e a realidade ao nosso redor, mas é inegável que existem analogias perturbadoras. A
que mais salta aos olhos é a ativa
cumplicidade dos serviços secretos ocidentais na manipulação do
integrismo islâmico como arma
anticomunista na Guerra Fria.
Como sempre em tais casos, o
problema é saber quem manipula
quem. Surpreendem-se agora esses serviços ao descobrir que a
manobra lhes esteja a explodir na
cara, para desse modo traduzir livremente "blowback", expressão
inventada pela CIA para designar as consequências não-intencionais das políticas de Guerra
Fria, clandestinas ou não.
A engenhosa fábula de Chesterton serve também ao propósito de
utilizar o absurdo para reduzir a
proporções realistas certas ondas
apocalípticas de pânico exagerado. Sem o desejo de minimizar as
ameaças reais, desde o início teve
a impressão de que a campanha
em curso no Afeganistão e no
mundo terminaria por apresentar semelhanças não tanto com a
Guerra Fria mas com a ofensiva
contra o terrorismo anarquista
da "belle époque".
Um primeiro paralelo provém
do caráter exacerbadamente espetacular dos atentados de 11 de
setembro, lembrando o conceito
anarquista da "propaganda do
ato", a convicção expressa por
Enrico Malatesta de que "o fato
insurrecional, destinado a afirmar os princípios socialistas por
meio de atos, é o mais eficaz dos
meios de propaganda". É verdade
que os anarquistas visavam não o
povo inocente, mas personalidades simbólicas do poder. Na última década do século 19, foram assim assassinados o rei Umberto, a
imperatriz Sissy, os presidentes
Carnot e McKinley, o primeiro-ministro Cánovas. Desencadeou-se, em consequência, reação quase de histeria, que associava todos
os anarquistas ou meros esquerdistas a terroristas em potencial e
os enxergava dissimulados em toda a parte e dotados de poder diabólico.
O anarquismo não merecia essa
reputação. Doutrina libertária,
de generosa carga utópica, a
anarquia tinha sido frequentemente associada à não-violência
em Proudhon, Tolstói ou Thoreau. Foi só com Bakunin que,
dentro da família anarquista, desenvolveu-se a vertente de violência revolucionária. A repressão
policial não era, contudo, sensível
a essa sutilezas, tratava todos
brutalmente, conduzindo a tragédias irreparáveis, como a execução de Sacco e Vanzetti.
Um ano antes da novela de
Chesterton, Conrad publicara um
dos seus grandes livros, "The Secret Agent", em que nada falta da
terrificante natureza do terrorismo, nem mesmo, como nos eventos de Nova York e Washington, a
seleção de alvos de forte sentido
simbólico. Muito mais sutil, o terrorista de Conrad deseja atentar
contra o observatório de Greenwich, símbolo da pretensão burguesa de domesticar o tempo.
Com o método do humor e do
paradoxo, Chesterton desconstruiu os exageros das teses conspiratórias, que atribuíam aos anarquistas periculosidade quase sobrenatural. Os fatos lhe deram razão, pois, apesar da espetacularidade dos regicídios, os anarquistas, esmagados pela repressão, jamais pesaram sobre os acontecimentos, desaparecendo como
movimento de massa na Guerra
Civil Espanhola. Muito antes, o
mundo brilhante porém secretamente enfermo da "belle époque"
havia sido destroçado na carnificina da Primeira Guerra Mundial, vítima não dos terroristas,
mas dos Estados que os combateram sem piedade, ao mesmo tempo em que eram corroídos pelas
forças de autodestruição do nacionalismo arrogante, do militarismo agressivo, da desmesurada
política de poder.
Haverá lições aí para os dias
que correm? É difícil fazer um juízo acerca do bem fundado do que
nos dizem sobre o terrorismo islâmico, pois nossas informações são
de segunda mão. Há, no entanto,
uma sucessão de fatos eloquentes:
o súbito colapso do regime dos talebãs, a destruição da base de
operações dos terroristas e a eliminação de algumas de suas figuras-chave, o estrangulamento financeiro, a não-repetição de
atentados, embora anunciados
várias vezes. Será que dentro de
alguns anos não estará o assunto
reduzido a problema crônico,
mas de intensidade menor, como
o narcotráfico?
Na incerteza, não deixam de inquietar declarações de nostálgicos
da Guerra Fria, animados com os
sucessos iniciais, que desfiam
compridas listas de sete, oito ou
dez países apontados como alvos
possíveis da continuação da campanha na base de indícios de gravidade muito variável. Qualquer
que seja o fundamento dessas posições não faria mal um pouco
mais de comedimento e prudência. O combate ao terrorismo internacional é legítimo e necessário, mas deve ser conduzido dentro da lei e com equilíbrio. De todo modo, o antiterrorismo não
deve ser erigido em novo princípio organizador e definidor da vida internacional, como foi o anticomunismo na Guerra Fria. Outros problemas graves de miséria,
injustiça, desigualdade aguardam atenção e soluções. Se lhes
voltarmos as costas, acabarão por
realizar-se as previsões de Chalmers Johnson, professor emérito
da Universidade da Califórnia,
que concluía seu livro "Blowback" com as seguintes palavras:
"A política mundial no século 21
será provavelmente determinada,
acima de tudo, pelo "blowback",
isto é, pelas consequências não-intencionais de decisões tomadas
na segunda metade do século 20
-consequências não-desejadas
da Guerra Fria e da crucial decisão americana de manter uma
postura de Guerra Fria num
mundo pós-Guerra Fria".
Rubens Ricupero, 64, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail - rubensricupero@hotmail.com
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