São Paulo, domingo, 03 de maio de 2009

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"Em vista daquela época, pelo amor de Deus, estou no céu"

VERENA FORNETTI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

A casa da infância não tinha teto, não tinha nada. Maria Castro dos Santos, 50, vivia no interior da Bahia nas décadas de 1960 e 1970, quando cada mulher tinha, em média, seis filhos. A mãe teve oito, um a cada dois anos, numa casa de chão batido em São Felipe. Na década de 1980, após migrar para São Paulo, teve só uma criança, em 25 anos de casamento.
Hoje, Maria é empregada doméstica, está no mesmo emprego há mais de duas décadas e conseguiu comprar carro, moto e casa. Devagar, ela e o marido economizam para construir mais cômodos e aumentar o espaço para a família. "Em vista daquela época, pelo amor de Deus, estou no céu. Não lucrei muito da minha infância. Com nove anos, eu já estava na roça trabalhando."
Maria não aprendeu a ler, mas acha que a estabilidade no trabalho e a família pequena a ajudaram a melhorar de vida. "Se tivesse oito filhos, estava me matando de trabalhar e não conseguiria nada. Para dar comida a todos, teria que tratar de qualquer jeito porque não tem como dar roupa, sapato e estudo. Na roça, tinha como dar comida, mas minha mãe criou todo mundo sem estudo."
A paulistana Neide Rigo, 47, também veio de família numerosa. Filha de uma costureira e de um metalúrgico, enquanto a mãe trabalhava em casa, ela e os quatro irmãos se esmeravam para arear as panelas e lustrar os tacos do assoalho. "Era gostoso ter família grande, mas não quis reproduzir aquilo. Quis dar um passo além."
Neide começou a trabalhar como secretária aos 14 anos, e o estudo a fez ir mais longe. "Estudei porque comecei a trabalhar cedo e vi outros exemplos, e não porque meus pais me incentivaram. Quando você começa a trabalhar, sai da periferia, para de seguir o modelo que está ao lado e quer progredir."
Ela concluiu o ensino médio em curso noturno e seguiu os estudos até terminar a faculdade de nutrição. Quando se casou, rompeu o modelo da família numerosa. Tem só uma filha, de 24 anos, que está no último ano do curso de medicina.
Na casa de Karina Bernardes Pimenta Vieira Gomes, 42, em Resende (RJ), eram cinco meninas e também havia outro "espírito do tempo". "Meu pai dizia: quem não quer estudar vai casar. Eu casei tarde e quis ser como a tia Lígia, a primeira mulher que usou calça comprida em Resende e que sempre teve o dinheiro dela."
Quando era pequena, Karina viajava pouco. "Era difícil sair com cinco crianças." Hoje é anestesista no Rio e viaja sempre com o marido e os dois filhos. Na última vez, perguntou a eles: "Patagônia ou Capelinha?", referindo-se ao ponto turístico perto de Resende. "Capelinha, mamãe", respondeu Enzo, 6, que, diferentemente dos pais, não se convenceu de que viajar para o exterior seja mais divertido que alimentar galinhas no interior.


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