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ARTIGO
Para ser mais feliz, esqueça o otimismo
ALAIN DE BOTTON
ESPECIAL PARA O "FINANCIAL TIMES"
JÁ ESTÁ claro há algum
tempo, desde que começou a conversa sobre os
"primeiros sinais" da recuperação, que aquilo que devemos temer acima de tudo é a esperança. A tentativa de confiar em
que o pior já passou parece condenada a causar decepções ainda maiores. Não só seremos infelizes como, por acreditarmos
que a calma e a felicidade sejam
a norma, nos sentiremos ainda
mais infelizes.
Chegou a hora de reconhecer
o quanto o otimismo com o
qual crescemos é estranho e
contraproducente. Pelos últimos 200 anos, a despeito de
choques ocasionais, o mundo
ocidental vive sob o domínio de
uma crença no progresso, baseada em realizações científicas e empresariais extraordinárias. De uma perspectiva mais
ampla, esse otimismo é uma
grande anomalia. Os seres humanos passaram a maior parte
da história conhecida extraindo curioso conforto do hábito
de esperar o pior. No Ocidente,
as lições sobre o pessimismo
derivam de duas fontes: os filósofos estoicos romanos e o cristianismo. Talvez seja hora de
revisitarmos esses ensinamentos para aliviar nossos pesares.
Se nos concentramos na primeira dessas fontes, o filósofo
Sêneca seria o escritor perfeito
para o momento. Vivendo em
uma era de inquietação política
e financeira (Nero ocupava o
trono imperial), Sêneca interpretava a filosofia como uma
disciplina que servia para nos
manter calmos diante de um
panorama de constante perigo.
Os consolos que seu pensamento oferecia eram sombrios
e inflexíveis: "Você diz que não
acreditava que isso aconteceria. Você acredita que haja alguma coisa que não vai acontecer,
quando sabe que é possível que
aconteça, quando percebe que
já aconteceu?". O filósofo tentou acalmar a sensação de injustiça de seus leitores lembrando a eles, no ano 62, que
desastres, naturais ou de causa
humana, serão sempre parte de
nossas vidas, por mais sofisticados e seguros que acreditemos nos termos tornado.
Se não nos atemos ao risco de
uma súbita calamidade, nos
mercados financeiros ou em
qualquer outra parte, e pagamos o preço por nossa inocência, isso acontece porque a realidade compreende duas características cruelmente inconstantes: por um lado, continuidade e confiabilidade que perduram por décadas; por outro,
cataclismos inesperados.
Vemo-nos divididos, entre
um convite plausível a presumir que o amanhã se assemelhará muito a hoje e à possibilidade de que nos defrontaremos
com um acontecimento aterrorizante, depois do qual nada
mais voltará a ser o mesmo.
A deusa da fortuna pode distribuir dádivas e depois assistir
inerte enquanto uma empresa
com 50 anos de história desaparece com velocidade terrível
ou um balanço é destruído por
ativos tóxicos.
Possibilidades sombrias
Porque aquilo que mais nos
fere é o que não esperamos, e
porque precisamos esperar por
qualquer coisa ("não existe nada que a fortuna não ouse"), é
necessário, argumenta Sêneca,
que tenhamos em mente o
tempo todo a possibilidade dos
mais devastadores eventos.
Ninguém deveria fazer um
investimento, aceitar o convite
para dirigir uma empresa ou
depositar dinheiro em um banco sem estar consciente, de um
modo que Sêneca desejaria
nem repulsivo nem desnecessariamente dramático, das possibilidades mais sombrias.
Dada nossa competência financeira, por muito tempo nos
sentimos em controle de nosso
destino. Confiamos em gênios
matemáticos que nos prometeram "administração de riscos"
e criaram derivativos tão complexos que nem ousávamos
contemplar seus detalhes. Confiança como essa jamais existiria se adotássemos a mentalidade dos estoicos.
É preciso, enfatizava Sêneca,
expandir nosso senso quanto
àquilo que pode sair errado em
nossas vidas. "Nada nos deveria
ser inesperado. Nossas mentes
sempre deveriam tentar antecipar todos os problemas e deveríamos considerar não aquilo
que deveria acontecer, mas sim
aquilo que pode acontecer. O
que é o homem? Um vaso que
ao menor tremor, ao menor impacto, pode quebrar."
O cristianismo reforçou a
mensagem dos estoicos. Ressaltava que, embora os seres
humanos possam se esforçar
pela perfeição, é um problema e
até um pecado supor que ela
possa ocorrer na Terra.
Temos nos inclinado a desconsiderar essas mensagens
sombrias. A filosofia burguesa
moderna deposita firmemente
suas esperanças em dois grandes supostos ingredientes para
a felicidade: o amor e o trabalho. Mas existe uma imensa e
irrefletida crueldade oculta discretamente por sob essa magnânima garantia de que todos
encontraremos satisfação aqui.
A questão não é que essas duas
entidades sejam invariavelmente incapazes de prover realização, mas que quase nunca o
fazem por muito tempo.
Quando uma exceção é confundida com uma regra, nossos
infortúnios pessoais, em lugar
de nos parecerem aspectos
quase inevitáveis da vida, pesam sobre nós como maldições
deliberadas. Ao negar a posição
natural reservada ao anseio e
ao desastre no destino humano, a ideologia burguesa nos
nega a possibilidade de consolo
coletivo por nossos casamentos
conflituosos, ambições inexploradas e carteiras de investimento torpedeadas e nos condena em lugar disso a sentimentos solitários de vergonha
e perseguição por termos fracassado em fazer de nós mesmos pessoas maiores.
O certo, em lugar disso, seria
que recordássemos grandes vozes pessimistas. Há citações
que acalento especialmente para tempos como estes.
Uma é de Sêneca: "Qual é a
necessidade de chorar quanto a
determinadas partes da vida?
Ela toda pede lágrimas".
A outra é do moralista francês Nicolas de Chamfort: "Um
homem engoliria um sapo a cada manhã se isso garantisse que
ele não precisaria encarar nada
de mais repulsivo pelo restante
do dia".
Tradução de PAULO MIGLIACCI
O mais recente livro do filósofo suíço radicado
em Londres ALAIN DE BOTTON publicado no
Brasil é "A Arquitetura da Felicidade" (editora
Rocco, 2007). O escritor lançou no mês passado
"The Pleasures and Sorrows of Work" ["Os Prazeres e Pesares do Trabalho"].
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