São Paulo, quarta-feira, 03 de junho de 2009

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PAULO RABELLO DE CASTRO

Uncle Sam, Inc.


Ninguém poderia imaginar Uncle Sam virando uma companhia de investimentos ao estilo Warren Buffett

O ESTOURO da bolha nos EUA, além de fortíssima recessão, trouxe uma nova forma de organização econômica: as corporações de Estado. Investir diretamente nas atividades produtivas -ou, em bom português, estatizar a produção- não tem sido o lema do capitalismo americano, tão admirado e copiado mundo afora. O arranjo social-intitucional que mantém o poder público tanto quanto possível afastado das decisões empresariais é a formula de crescimento com liberdade que valoriza as iniciativas individuais e possibilita a construção política de uma sociedade de fato democrática.
A acumulação de enormes passivos em indústrias e bancos americanos -que, de tão elevados, são agora considerados grandes demais para falir e desaparecer- forçou o governo dos EUA a agir em seu resgate, sob a alegação de que a falta de socorro, nesses casos específicos, envolveria "o sofrimento de milhões de pessoas" (palavras recentes do presidente Obama). Mas o custo financeiro desses apoios oficiais é gigantesco, embora escondido nas rubricas de um déficit público cada vez maior. Por meio do explosivo endividamento público, a sociedade pagará a conta, que se projeta chegar a 80% ou mais do PIB americano até 2019.
A soma de todas as recentes intervenções do governo dos EUA no âmbito empresarial pode chegar facilmente a US$ 1 trilhão. A adoção de posição acionária majoritária (de 60%, segundo consta) na agora chamada "nova GM" corresponde a uma injeção inicial de US$ 50 bilhões. Espantosos são também os valores já envolvidos em outras operações de socorro, como a da seguradora AIG (estimada em US$ 185 bilhões), as dos bancos (Citigroup e outros) e a do financiamento imobiliário (algo como US$ 200 bilhões às empresas Fannie Mae e Freddie Mac). Ninguém poderia sequer imaginar Uncle Sam virando uma companhia de investimentos ao estilo Warren Buffett, só que de empresas problemáticas, em setores tão variados como bancos, seguradoras, imobiliárias e, agora, montadoras de automóveis.
No setor de saúde, via o Medicare, a presença estatal não é menos importante e, em novas fontes de energia, provavelmente o será em breve. Não custa lembrar que a ação do Estado na previdência social básica ("Social Security") também aumentará muito com a aposentadoria da geração do pós-guerra.
Mais do que uma concordata sob a proteção financeira do Estado, a presença do governo na GM é uma arriscada quebra de paradigma que lança dúvida sobre o modelo que conhecemos até aqui como "capitalismo americano". Nele, o direito e a capacidade de correr riscos empresariais estiveram sempre associados à possibilidade de quebra e falência, caso o empresário se tornasse irremediavelmente insolvente. Mesmo quando, num esforço de guerra, Uncle Sam geralmente preferia fazer encomendas ao setor privado, em vez de bancar o produtor direto. A atual condição de jogo é mais delicada, pois enseja um modelo com largas portas de entrada, mediante aportes vultosos, porém com estreitos caminhos de saída, mesmo se tudo der certo nessa gestão anfíbia, num país cujo forte sempre foi de uma arrojada cultura de empreendedorismo.
O movimento intervencionista vem associado, equivocadamente, ao argumento do "fato inevitável", dando a entender que a atenuação do sofrimento das pessoas empregadas em empresas insolventes só pudesse ser alcançado pela assunção de suas dívidas pelo Estado, cujos pagadores de impostos, ao final, amargarão a conta.
Estes são, sem dúvida, tempos de assombrosas mudanças.


PAULO RABELLO DE CASTRO, 59, doutor em economia pela Universidade de Chicago (Estados Unidos), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, classificadora de riscos. Preside também a RC Consultores, consultoria econômica, e o Conselho de Planejamento Estratégico da Fecomercio SP. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

paulo@rcconsultores.com.br


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