São Paulo, domingo, 04 de fevereiro de 2007

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VINICIUS TORRES FREIRE

Ai, que calo-ô-ô-ô-ô-ô-or...


Tragédia climática dá vazão a imposturas de gente que ignora os calores do inferno da vida em 70% do planeta

ATRAVESSANDO O deserto do Saara, antes de chegar a savanas mais verdes da África, a gente passa pelo Sahel. É o ambiente de uns países desgraçados, que ficam mais ou menos em torno da linha que vai das Guinés à Etiópia. O Sahel está virando deserto. Há anos está mais seco que o habitual.
Seus pastores e agricultores estão na pior. Migram em massa.
O Sahel parece um desses cenários-catástrofe que a comissão mundial de cientistas projetou em seu estudo sobre o clima do fim do mundo. Mas não se dá bola para a gente do Sahel e outras assim obscuras.
Teve muito de repulsivo na comunhão pseudo-universal de gente rica e hipócrita compungida pela tragédia do clima que ameaça a "irmandade humana". Vide o caso de lideranças globais, dessas que fazem agá em Davos, que deram showzinho de apreensão com o destino humano.
A impostura da comunhão global parece um caso de ideologia de cabeça para baixo. A ideologia faz o que é de fato particular parecer universal ("todos são iguais perante a lei", mas alguns são mais iguais que os outros). Mas o anúncio "oficial" do desastre universal do clima suscitou uma inquietude de fato particularista, talvez com as futuras cheias marinhas no metrô de Nova York ou nos Hamptons (balneário rico dos EUA), digamos, para avacalhar, embora o egoísmo tenha sido mesmo o motor remoto da farsa. Egoísmo, pois a "irmandade humana" vai à breca regularmente, e ninguém liga.
A crise do clima é, sim, uma tragédia (punição desmesurada de um erro do qual se ignorava a dimensão, castigo ruinoso da inadvertida arrogância humana, de sua falta de limites, como dizia o filósofo grego). Sim, há gente honrada e séria preocupada com o clima. Por que farsa, então?
Qual grupo, classe ou país, com poder e influência, preocupa-se de fato? Considere-se um tema que até interessa ao poder global: comércio.
Negocia-se há anos um modo de acabar com a proteção que governos ricos dão a 2% de sua população, a que vive de vacas gordas, de agricultura, barrando produtos de bilhões de crioulos agrícolas do mundo pobre. Nem isso se resolve, questão mais simples que o caos climático.
O que virá? Uma ONU do clima, a ser avacalhada pelos EUA? Os EUA não vão mais se empanturrar de carne, gasolina, aço e plástico a fim de dar esmolas para o miserê mundial que nem teve a chance de se industrializar e colaborar para a ruína climática? A China dará trela a quem queira impedi-la de levar centenas de milhões à classe média, consumindo em massa recursos naturais?
Ali pelo Sahel, em Darfur, milhares de refugiados famintos são chacinados regularmente por milícias apoiadas pelo governo do Sudão.
Mais ao leste, a Somália, país que inexiste, foi invadido por outro Estado arruinado, a Etiópia, com apoio dos EUA, "guerra contra o terror".
"Top guns" americanos mataram dúzias de crioulos muçulmanos somalis. Quase ninguém liga ou reclama de "violação da lei internacional", nem que seja só para constar, como na Sérvia, Bósnia etc.
O clima está quente como sempre para 70% da humanidade. Se derem um jeito de ligar o ar-condicionado, será para a minoria habitual, embora seja só um refresco, pois o caldo oceânico já começou a entornar.

vinit@uol.com.br


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