São Paulo, sábado, 04 de abril de 2009

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ARTIGO

A China na armadilha do dólar

PAUL KRUGMAN
DO "NEW YORK TIMES"

NOS ESTÁGIOS iniciais da crise financeira, os engraçadinhos brincavam que o comércio dos EUA com a China havia se provado realmente justo e proporcional.
Os chineses vendiam brinquedos envenenados e frutos do mar estragados, e os norte-americanos lhes vendiam títulos fraudulentos. Mas hoje em dia os dois lados do negócio estão se desfazendo.
Na ponta de lá, o apetite mundial por bens chineses caiu acentuadamente. As exportações chinesas despencaram nos últimos meses e são agora 26% mais baixas do que há 12 meses.
Na ponta americana, os chineses estão evidentemente começando a se sentir ansiosos quanto àqueles títulos.
Mas a China parece continuar mantendo expectativas pouco realistas. E isso é um problema para todos.
A grande notícia da semana passada foi um discurso de Zhou Xiaochuan, presidente do banco central chinês, que apelava para a criação de uma "nova moeda de reserva supranacional".
A ala paranoica do Partido Republicano imediatamente alertou sobre um vil complô para fazer com que os Estados Unidos abram mão do dólar.
Mas o discurso de Zhou foi na verdade uma admissão de fraqueza. Na prática, estava dizendo que a China se havia deixado apanhar na armadilha do dólar, e que nem pode sair sem ajuda nem mudar as políticas que a colocaram nessa posição.
Uma nota sobre os antecedentes: nos primeiros anos da década, a China começou a manter grandes superávits comerciais e também começou a atrair grandes influxos de capital estrangeiro.
Se a China tivesse uma taxa de câmbio livre, como o Canadá, isso teria resultado em uma alta no valor de sua moeda, o que por sua vez teria desacelerado o crescimento das exportações chinesas.

Paridade
Mas a China optou em lugar disso por manter mais ou menos fixa a paridade entre o yuan e o dólar. Para tanto, o governo tinha de comprar dólares à medida que estes inundavam o país. Com a passagem dos anos, os superávits comerciais continuaram subindo -e o mesmo aconteceu com a reserva chinesa de ativos estrangeiros.
É preciso ressaltar que a piada sobre os títulos é injusta. Excetuada uma incursão tardia e insensata às ações (no pico desse mercado), os chineses na verdade acumularam ativos muito seguros; notas do Tesouro norte-americano respondem por grande parte das reservas totais.
Mas, embora essas notas estejam entre os ativos mais seguros do planeta no que tange a possíveis calotes, elas oferecem retornos muito baixos.
Será que havia uma estratégia profunda por trás desse acúmulo de ativos de baixo rendimento? Provavelmente não.
A China adquiriu sua imensa reserva de US$ 2 trilhões -o que transformou a República Popular em República dos Títulos- da mesma maneira que os britânicos adquiriram seu império: em um ataque de distração.
E não muito tempo atrás, ao que parece, os líderes chineses despertaram e compreenderam que tinham um problema.
O baixo rendimento não parece incomodá-los muito, mesmo agora. Mas aparentemente o fato de que 70% desses ativos estão denominados em dólares os preocupa, porque qualquer queda futura do dólar poderia significar uma grande perda de capital para a China.
Isso explica a proposta de Zhou quanto à criação de uma nova moeda de reserva, assemelhada aos DES (Direitos Especiais de Saque), a unidade monetária na qual o FMI (Fundo Monetário Internacional) mantém suas contas.
Mas a situação é ao mesmo tempo menos e mais complicada do que parece.
Os DES não são dinheiro real. Representam uma unidade contábil cujo valor é definido por uma cesta de dólares, euros, ienes e libras esterlinas. E nada impede que a China diversifique suas reservas de forma a reduzir o peso do dólar; de fato, nada impede que ela componha sua reserva de maneira que se equipare à composição da cesta cambial dos DES -nada, quer dizer, a não ser o fato de que hoje os chineses detêm tantos dólares que é impossível vendê-los sem derrubar a cotação da moeda e deflagrar exatamente a perda de capital que os líderes do país temem.

Apelo
Assim, o que a proposta de Zhou significa na prática é um apelo para que alguém resgate a China das consequências de seus erros de investimento. Isso não vai acontecer.
E essa invocação de uma solução mágica para o problema do excesso de dólares chinês sugere algo mais: que os líderes chineses ainda não aceitaram que as regras do jogo mudaram de maneira fundamental.
Dois anos atrás, vivíamos em um mundo no qual a China podia poupar muito mais do que investia e dispor da poupança excedente adquirindo ativos norte-americanos. Esse mundo acabou.
No entanto, um dia depois de seu discurso sobre a moeda de reserva, Zhou fez outro pronunciamento, no qual parecia asseverar que o índice extremamente elevado de poupança da China é imutável, pois resulta do confucionismo, que exalta a "antiextravagância". E, enquanto isso, "não é o momento certo" de os EUA pouparem mais. Em outras palavras: vamos deixar tudo como está.
O que tampouco vai acontecer. Em resumo, a China ainda não está disposta a encarar as dolorosas mudanças que serão necessárias para enfrentar a crise mundial.
É claro que o mesmo poderia ser dito sobre os japoneses, sobre os europeus -e sobre os norte-americanos.
E esse fracasso em encarar as novas realidades é o principal motivo para que, a despeito de certo vislumbre de boas novas -a conferência de cúpula do Grupo dos 20 realizou mais do que eu imaginava possível-, a crise provavelmente dure anos.


PAUL KRUGMAN , economista, é colunista do jornal "The New York Times" e professor na Universidade Princeton (EUA).

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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