São Paulo, domingo, 04 de agosto de 2002

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Democracia e capitalismo

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

Depois da queda do Muro de Berlim, a teoria social predominante praticamente aboliu a palavra capitalismo de seu dicionário. É como se a vitória acachapante sobre o socialismo tivesse, num mesmo golpe, tornado inútil o conceito que designava o sistema triunfante. Trata-se de um estranho jogo dialético: o caráter histórico do capitalismo, afirmado por estudiosos mais autorizados como Marx, Weber, Fernand Braudel e Polanyi é eternizado numa tosca manobra de "naturalização" das relações sociais e econômicas. "There is no alternative", proclamava a senhora Margaret Tatcher.
Para os corifeus do moderno pensamento social, o capitalismo -identificado de forma reducionista à propensão natural para a troca, na magistral operação ideológica de Adam Smith- não só corresponde aos impulsos inatos do homem, como deverá existir para sempre. Sua historicidade é também surrupiada na idéia de que, afinal, ele é sempre o mesmo. É o que postulam as hipóteses da escolha racional. O indivíduo racional e maximizador da utilidade é a argamassa da teoria social dominante, tanto da economia como de sua fiel servidora, a dita ciência política.
A hipótese da racionalidade individual é um pressuposto metafísico da corrente dominante, necessário para apoiar a "construção" do mercado como um servomecanismo capaz de conciliar os planos individuais e egoístas dos agentes.
A metafísica oculta uma "ontologia do econômico" que postula uma certa concepção do modo de ser, uma visão da estrutura e das conexões da sociedade capitalista. Para esse paradigma, a sociedade onde se desenvolve a ação econômica é constituída mediante a agregação dos indivíduos, articulados entre si por nexos externos e não necessários, tais como os que atavam Robinson Crusoé a Sexta-Feira.
Essa operação ideológica permite a reificação dos conceitos de Estado e mercado e, de quebra, a eliminação do conflito social, o que não é pouco. Estado e mercado deixam de ser instâncias e resultado da constituição do capitalismo enquanto sistema histórico de relações sociais e econômicas e passam a representar alternativas abstratas de organização da sociedade. "Como o senhor prefere, mais Estado ou mais mercado?" Desconfio de que algumas teorias serviriam melhor como um guia de instruções para garçons de restaurantes baratos.
É dessa manobra que partem os teóricos da globalização, como Giddens e outros menos votados. Os globalizantes à esquerda, aliás, imaginam estar prestando homenagem à boa tradição de seu pensamento, cedendo passo a supostos automatismos e inevitabilidades "progressistas" que estariam implícitas na evolução do capitalismo.
Esse esquerdismo de mercado é exatamente o anverso de certo politicismo desvairado. Ambos pretendem ignorar as restrições impostas pelas atuais relações entre Estado e mercado à formulação de alternativas, porque descartaram de partida a complexidade das relações entre mudanças na estrutura socioeconômica e conjunturas políticas.
O professor José Luis Fiori vem afirmando que o político se enlaça no econômico de forma peculiar -e certamente reversível- nesta etapa do capitalismo. Diz ele: "A aparência é que a mão invisível dos mercados é que veta ou pune qualquer alternativa política e econômica ao modelo de subserviência. Mas, no mundo real, a compatibilização desse veto dos mercados com o funcionamento dos sistemas eleitorais competitivos só tem sido possível graças à corrupção ou esvaziamento dos poderes legislativos e à transformação dos processos eleitorais numa competição empresarial entre partidos e programas de governo cada vez mais realistas e convergentes na aceitação das regras do jogo".
É preciso dizer mais. No capitalismo, as regras do jogo são as da acumulação de riqueza monetária obtida no mercado, isto é, mediante a competição feroz entre empresas, Estados e indivíduos. Em sua roupagem neoliberal, esse jogo pressupõe a violação permanente e sistemática das regras. As relações entre o político e o econômico estão configuradas de modo a remover quaisquer obstáculos à expansão da grande empresa e do capital financeiro internacionalizado, apoiados na força militar e política do Estado imperial.
Trata-se da emergência, na esfera jurídico-política, da exceção permanente, na consolidação da lei do mais forte, para desgosto dos que se imaginam descendentes do Iluminismo e de seu programa de garantias da liberdade e da igualdade.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 59, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).

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