São Paulo, domingo, 04 de novembro de 2001

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LUÍS NASSIF

O violão brasileiro de Dilermando

Na parede da sala da casa do meu tio Leonardo Mesquita havia uma foto autografada de Dilermando Reis. O retrato testemunhou as mudanças por que nossas famílias passaram em Poços de Caldas. Saiu da casa da rua Rio de Janeiro, vizinha à nossa, mudou-se para uma casa da rua lateral e ficava observando rodadas musicais que meu tio fazia com amigos e, depois, com filhos e sobrinhos.
Tio Léo havia sido colega de Dilermando Reis nos anos 30, quando o cego Levino Conceição -grande e desconhecido pioneiro do choro- passou por Guaratinguetá, conheceu o rapaz que tocava violão e o trouxe consigo para o Rio de Janeiro. Junto com João Pernambuco, Levino possuía uma escola de violão -na rua do Catete, se me lembro bem das histórias do tio. O jovem Leonardo Mesquita começou a tomar aulas com Levino, que, em seguida, o encaminhou para Dilermando, da mesma idade do tio, mas já explodindo no Rio de Janeiro.
Dilermando nasceu em 1916, em Guaratinguetá, e morreu em 1977, no Rio de Janeiro. Dizer o que representou para o violão brasileiro nos anos 40 a 60 não é muito necessário, porque toda a atual geração de violonistas foi beber em suas águas.
Curiosamente, Dilermando era mal visto pela elite do choro carioca -aquela que se formou a partir dos Turunas da Mauricéia e, depois, gravitou em torno do Regional do Canhoto e do Época de Ouro. Dizia-se que ele se perdia no ritmo, que não sabia acompanhar -o que meu tio Léo confirmava. Dizia-se mais, que ele se apoiara a vida inteira em Meira -mestre de Baden Powell, entre outros, e que era o segundo violão no acompanhamento a Dilermando- sem nem sequer dar crédito nas faixas. O que era verdade, com os devidos descontos: naquele período, não se tinha por hábito fornecer a ficha técnica das gravações.
Dizia-se mais: que o verdadeiro talento era Meira, não Dilermando, e aí a crítica perdia o eixo. Dilermando foi extremamente popular, especialmente depois que o presidente JK, dentro do seu marketing extraordinário, fez questão de ter aulas com ele. Mais que popular, no entanto, Dilermando foi mestre absoluto do violão brasileiro. Certo, não tinha a flexibilidade dos chorões clássicos. Sua formação foi de violão clássico, da escola européia, mais perto da fronteira do erudito e menos do regional. Mas a pegada de sua mão esquerda era da mesma estirpe trazida por João Pernambuco, aprimorada por ele, e que espanhol nenhum conseguiu ter até hoje, apesar do alto nível da sua escola.
Em pouco tempo, o repertório de Dilermando se consolidou como o mais tocado por todos os clubes e grupos de violão que se multiplicam por este nosso país. Não apenas suas composições, mas suas interpretações de clássicos como "Marcha dos Marinheiros" e "Abismo de Rosas", de Américo "Canhoto" Jacomino, "Sons dos Carrilhões", de João Pernambuco, ou uma linda de Waldemar Henrique, para quem Dilermando fez o arranjo definitivo.
Mas foram os choros e valsas de Dilermando que aqueceram e continuam aquecendo corações de várias gerações. Não há brasileiro vivo ou morto que não se comova com suas músicas. "Magoado" (no qual o segundo violão excepcional é de Meira) tornou-se um clássico insuperável do violão, talvez o choro mais executado da história do violão brasileiro. Outros choros, como "Doutor Sabe Tudo", "Tempo de Criança", "Xodó da Baiana", valsas como "Noite de Lua", "Se Ela Perguntar", "Uma Valsa e Dois Amores" tornaram-se clássicos no momento em que foram lançadas. Algumas das composições -especialmente "Se Ela Perguntar"- foram inspiradas diretamente em Levino, que, por sua vez, foi uma das fontes de inspiração de Villa-Lobos.
No Rio, mesmo sendo olhado de lado pelos chorões clássicos, Dilermando tornou-se não apenas uma estrela, mas um grande mobilizador do violão brasileiro. Pelas várias formações de sua "Orquestra de Violões Dilermando Reis" passaram dezenas de violonistas que, depois, foram espalhar sua arte por gerações de alunos, como Nicanor Teixeira, Chico Sá, Molina, Hilton Ramos, Waldir León, Simplício, Oswaldo Mendes, Deoclécio Melin e Evilásio Maciel.
A reconciliação com a elite do choro deu-se recentemente, quando o grande Raphael Rabello, a maior esperança do choro, ex-aluno do Meira, gravou um CD sobre Dilermando, para o qual escrevi a contracapa. Foi o último trabalho de Raphael, irregular, refletindo o profundo drama que o acompanhou até a morte, pouco tempo depois, mas a homenagem final da nossa maior esperança de violão ao mestre maior.


Internet: www.dinheirovivo.com.br
E-mail - lnassif@uol.com.br


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