São Paulo, quinta-feira, 05 de fevereiro de 2004

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LUÍS NASSIF

Barbeiragem e ortodoxia

Nos últimos dias, caiu a ficha da opinião pública sobre os estragos provocados pela imprudência do Banco Central no manejo da política monetária em 2003.
Mais estragos serão cometidos em 2004. E só ocorreram e ocorrerão pela falta de coragem do governo e por essa imprudência de alguns setores da opinião pública de dividir o governo em dois -os "modernos" e os "atrasados"- e julgar que, ao endossar as críticas às loucuras do BC, se estariam fortalecendo os "atrasados".
O que ocorreu em 2003 com a política monetária é um desastre sob qualquer ótica. Não se trata de ortodoxia versus heterodoxia, mas de barbeiragem. O discurso dogmático sobre a independência do BC e essa visão futebolística de dividir o mundo entre "bons" e "maus" acabaram conferindo um poder ilimitado à autoridade monetária, deixando o país sem defesas, mesmo com setores "mercadistas" do próprio governo sabendo da insuficiência técnica da atual diretoria do banco.
Uma das conseqüências mais nefastas de uma política continuada de taxas elevadas de juros é que, ao aumentar o estoque da dívida, seus efeitos se prolongam ao longo dos anos. Vamos a um pequeno exercício matemático, levando em conta quatro variáveis:
1) crescimento do PIB: 2,5% ao ano;
2) taxas de juros reais de financiamento da dívida pública: 8% reais ao ano;
3) superávit primário (excluindo o serviço e a amortização da dívida): 4,25% ao ano;
4) taxa de crescimento da economia: 2,5% ao ano.
Se se começasse 2004 com a relação dívida/PIB em 55% (como era no início de 2003), em 2013 a relação teria caído para 52% -uma queda de 2,5 pontos percentuais apenas, com toda a dose de sacrifício embutida nas hipóteses.
Mantidos todos os demais fatores, mas partindo de uma relação dívida/PIB de 58,5% (por culpa da política de juros praticada em 2004), em 2013 a relação estará em 59% -sete pontos percentuais a mais, apenas como decorrência dos juros praticados em 2003.
Agora suponha que o Copom (Comitê de Política Monetária do Banco Central) mantenha a taxa real de juros em 10% em 2004 e, a partir de 2005, a reduza para 8%. Mantidos os demais fatores, em 2013 a relação dívida/PIB estará em 61%.
A irresponsabilidade fiscal e monetária do BC -de permitir a alta de 3,5 pontos percentuais na relação dívida/PIB em 2003, mesmo com a queda do dólar, e de manter o juro real em 10% neste ano- significará, em 2013, nove pontos a mais na relação dívida/ PIB.
No pronunciamento de anteontem, o ministro da Fazenda, Antonio Palocci Filho, justificou a parada na queda do juro com o argumento de que há uma defasagem de seis meses nos efeitos da política monetária -razão para suspender a queda para avaliação.
Se se tinha consciência dessa defasagem, por que, em abril e maio do ano passado, quando a atividade econômica derretia a olhos vistos, não se procurou amainar a queda ao acelerar a redução de juros e ao ser prudente em relação à dívida pública? A própria equipe da Fazenda, intramuros, sustentava haver espaço para queda de até três pontos percentuais; o Copom baixou meio ponto. E nada se fez porque, mesmo sendo o avalista de Henrique Meirelles, Palocci ficou prisioneiro da ficção que criou.

E-mail - Luisnassif@uol.com.br

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