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LUÍS NASSIF
Sem lenço,
sem documento
Vendo Caetano Veloso ser
premiado pelo Grammy,
olhando a figura composta, de
terno, levemente grisalho e surpreendentemente bem conservado, é difícil imaginar o rebelde que explodiu na música
brasileira na segunda metade
dos anos 60. Foi bastante curioso o processo de desabrochamento de Caetano. Começou
lírico. "Clarice", das primeiras
músicas dele, era um primor de
lirismo, assim como uma outra
música -"foi num dia, numa
festa"-, embora cantada de
modo meio dramático por Maria Odete, cantora que se tornou conhecida nos antigos festivais da Tupi.
Lá em Poços de Caldas, por
essa época, a nossa turma dividia-se entre o lirismo de Chico
Buarque e o épico Geraldo
Vandré. Depois de "Disparada", os festivais de música haviam consagrado um padrão
estético recorrente, no qual todas as músicas deveriam terminar em um grande final, que
fizesse o público "arrepiar".
Caetano não era muito chegado a esses fricotes. Quando
aportou em São Paulo, com
Gilberto Gil e Gal Costa, chamou a atenção da rapaziada
que acompanhava a MPB, mas
não muito. O impacto inicial
de Gil foi maior. Aquele estilo
nordestino, de músicas que
sempre davam uma volta a
mais -conforme uma contracapa famosa de Chico Buarque
para o primeiro LP de Gil-,
entusiasmava a nós, interiorianos fanáticos pela boa música. No início, Caetano se destacou mais pelas vitórias alcançadas no concurso "Qual é a
Música", no qual cada participante tinha que se lembrar de
uma música que contivesse a
palavra apresentada.
A explosão de Caetano ocorreu com "Sem Lenço, Sem Documento". Cá para nós, até hoje acho a música meio inexpressiva, datada no tempo,
longe das melhores produções
de Caetano. Naquele momento, foi uma antibomba extraordinária. O padrão dos festivais
havia consagrado ou o saudosismo exacerbado de Chico
Buarque ou aquele troço meio
latino, meio "El Condor Pasa"
do Vandré. De repente Caetano surge com uma música absolutamente contemporânea,
assexuada, cabeça fresca,
acompanhado por um conjunto de guitarristas argentinos de
cabelos compridos -justo no
período em que Elis Regina comandava passeatas contra a
guitarra.
Lá para os lados de Poços e
de São João da Boa Vista, confesso que captei a mensagem
do mestre, especialmente depois que Caetano enfrentou a
turba sedenta de sangue com
"É Proibido Proibir", ajudado
por uma Gal Costa linda, jovem, uma deusa guerreira com
voz de cristal. Imediatamente
juntamos o pessoal da banda e
começamos a compor dentro
da nova estética, recorrendo
quase a uma colagem de estilos, que iam do barroco ao rock
pauleira.
A essa altura a Tropicália tinha sido lançada. Figuras como os maestros Júlio Medaglia,
Rogério Duprat, Damiano Cozella traziam as informações
da música concreta e compunham uma salada maravilhosa com os tropicalistas -estes
bebendo direto em Oswald de
Andrade. Caetano foi radicalizando cada vez mais. Em
"Araçá Azul", lançado pouco
antes de se exilar na Inglaterra,
tentou enveredar pela música
experimental pesada. Mas não
tinha conhecimento musical
suficiente para fazer o que Hermeto Paschoal faria de modo
definitivo alguns anos depois.
A diferença de Caetano estava na clareza com que percebia
os processos culturais, como
entendia o rio em movimento
da cultura nacional. Estava
nas letras, estupendas, poéticas. Mas estava também em
uma intuição musical inacreditável. É curioso esse processo.
Chico e Caetano estão entre os
grandes letristas da MPB. Pelo
talento com as palavras, seu talento musical tende a ser minimizado. No entanto o Chico intuitivo dos primeiros anos
transformou-se em um compositor extremamente sofisticado
nas harmonias e na melodia. E
Caetano, com seu violão-pau,
tem sacadas melódicas clássicas. É um melodista do nível
dos melhores que este país já
teve.
.No entanto, iconoclasta, experimentador de todos os estilos, aparentemente debochado
e irreverente, Caetano sempre
foi uma espécie de profeta
guardião da cultura nacional,
de uma idoneidade a toda prova na consolidação da nossa
cultura, assim como João Gilberto, seu guru maior. Em geral, tendemos a sublimar as
primeiras emoções. Muitos
amigos consideram que Caetano, assim como Gil, Chico e
Edu, teve seu auge no final dos
anos 60, com Tropicália. Para
mim, foi "Tropicália 2", quando consegue sintetizar de maneira definitiva os principais
valores que compõem a cultura
brasileira dos últimos 30 anos,
do samba ("a tristeza é senhora / desde que o samba é samba
é assim"), o Cinema Novo, a
Tropicália.
Com sua inspiração, seu inconformismo, trata-se de uma
das figuras básicas da minha e
das gerações que vieram depois.
E-mail: lnassif@uol.com.br
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