São Paulo, domingo, 05 de março de 2000


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LUÍS NASSIF
Sem lenço, sem documento

Vendo Caetano Veloso ser premiado pelo Grammy, olhando a figura composta, de terno, levemente grisalho e surpreendentemente bem conservado, é difícil imaginar o rebelde que explodiu na música brasileira na segunda metade dos anos 60. Foi bastante curioso o processo de desabrochamento de Caetano. Começou lírico. "Clarice", das primeiras músicas dele, era um primor de lirismo, assim como uma outra música -"foi num dia, numa festa"-, embora cantada de modo meio dramático por Maria Odete, cantora que se tornou conhecida nos antigos festivais da Tupi.
Lá em Poços de Caldas, por essa época, a nossa turma dividia-se entre o lirismo de Chico Buarque e o épico Geraldo Vandré. Depois de "Disparada", os festivais de música haviam consagrado um padrão estético recorrente, no qual todas as músicas deveriam terminar em um grande final, que fizesse o público "arrepiar". Caetano não era muito chegado a esses fricotes. Quando aportou em São Paulo, com Gilberto Gil e Gal Costa, chamou a atenção da rapaziada que acompanhava a MPB, mas não muito. O impacto inicial de Gil foi maior. Aquele estilo nordestino, de músicas que sempre davam uma volta a mais -conforme uma contracapa famosa de Chico Buarque para o primeiro LP de Gil-, entusiasmava a nós, interiorianos fanáticos pela boa música. No início, Caetano se destacou mais pelas vitórias alcançadas no concurso "Qual é a Música", no qual cada participante tinha que se lembrar de uma música que contivesse a palavra apresentada.
A explosão de Caetano ocorreu com "Sem Lenço, Sem Documento". Cá para nós, até hoje acho a música meio inexpressiva, datada no tempo, longe das melhores produções de Caetano. Naquele momento, foi uma antibomba extraordinária. O padrão dos festivais havia consagrado ou o saudosismo exacerbado de Chico Buarque ou aquele troço meio latino, meio "El Condor Pasa" do Vandré. De repente Caetano surge com uma música absolutamente contemporânea, assexuada, cabeça fresca, acompanhado por um conjunto de guitarristas argentinos de cabelos compridos -justo no período em que Elis Regina comandava passeatas contra a guitarra.
Lá para os lados de Poços e de São João da Boa Vista, confesso que captei a mensagem do mestre, especialmente depois que Caetano enfrentou a turba sedenta de sangue com "É Proibido Proibir", ajudado por uma Gal Costa linda, jovem, uma deusa guerreira com voz de cristal. Imediatamente juntamos o pessoal da banda e começamos a compor dentro da nova estética, recorrendo quase a uma colagem de estilos, que iam do barroco ao rock pauleira.
A essa altura a Tropicália tinha sido lançada. Figuras como os maestros Júlio Medaglia, Rogério Duprat, Damiano Cozella traziam as informações da música concreta e compunham uma salada maravilhosa com os tropicalistas -estes bebendo direto em Oswald de Andrade. Caetano foi radicalizando cada vez mais. Em "Araçá Azul", lançado pouco antes de se exilar na Inglaterra, tentou enveredar pela música experimental pesada. Mas não tinha conhecimento musical suficiente para fazer o que Hermeto Paschoal faria de modo definitivo alguns anos depois.
A diferença de Caetano estava na clareza com que percebia os processos culturais, como entendia o rio em movimento da cultura nacional. Estava nas letras, estupendas, poéticas. Mas estava também em uma intuição musical inacreditável. É curioso esse processo. Chico e Caetano estão entre os grandes letristas da MPB. Pelo talento com as palavras, seu talento musical tende a ser minimizado. No entanto o Chico intuitivo dos primeiros anos transformou-se em um compositor extremamente sofisticado nas harmonias e na melodia. E Caetano, com seu violão-pau, tem sacadas melódicas clássicas. É um melodista do nível dos melhores que este país já teve.
.No entanto, iconoclasta, experimentador de todos os estilos, aparentemente debochado e irreverente, Caetano sempre foi uma espécie de profeta guardião da cultura nacional, de uma idoneidade a toda prova na consolidação da nossa cultura, assim como João Gilberto, seu guru maior. Em geral, tendemos a sublimar as primeiras emoções. Muitos amigos consideram que Caetano, assim como Gil, Chico e Edu, teve seu auge no final dos anos 60, com Tropicália. Para mim, foi "Tropicália 2", quando consegue sintetizar de maneira definitiva os principais valores que compõem a cultura brasileira dos últimos 30 anos, do samba ("a tristeza é senhora / desde que o samba é samba é assim"), o Cinema Novo, a Tropicália.
Com sua inspiração, seu inconformismo, trata-se de uma das figuras básicas da minha e das gerações que vieram depois.

E-mail: lnassif@uol.com.br

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