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PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.
Fora daqui, o FMI!
O setor de tradução do FMI
é eficiente e ativo; apesar disso, há dificuldades, algumas cômicas
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CALMA, LEITOR . Não pense que
enlouqueci. O título de hoje
tem a sua razão de ser.
Sempre escrevi esta coluna para o
leitor brasileiro, só o brasileiro. Muito raramente, aparecia um leitor estrangeiro extraviado por aqui -fazendo seus comentários, geralmente despropositados. É normal. As dificuldades de comunicação já são
tão grandes entre pessoas da mesma
língua materna! Estrangeiro bóia
mesmo.
Pois bem. Aqui no FMI existe um
setor de tradução bastante eficiente
e ativo. Às vezes, o Departamento de
Relações Externas toma a iniciativa
de pedir a tradução, para o inglês,
dos meus artigos. Vários deles acabam no sistema interno de notícias
da instituição. Não reclamo, claro.
Fico até muito satisfeito. Por outro
lado, fico também com uma sensação um pouco estranha de que estrangeiros estão bisbilhotando o
meu diálogo, estritamente particular, com o leitor brasileiro.
Os tradutores do Fundo capricham, mas há dificuldades, algumas
cômicas. Exemplo: como traduzir
"turma da bufunfa"? Já tentaram
"moneyed classes" -classes endinheiradas. Não é a mesma coisa.
"Turma" e principalmente "bufunfa" são palavras que resvalam para o
deboche e carregam conotações ambivalentes, duvidosas. Qual será a
etimologia de "bufunfa"? Talvez seja
de origem africana, o que explicaria,
diga-se de passagem, a reação um
pouco violenta de alguns bufunfeiros brasileiros a artigos que publiquei nesta coluna.
Mais difícil ainda é traduzir os "arrancos triunfais de cachorro atropelado" do Nelson Rodrigues. Você
não faz idéia, leitor, do que isso vira
em inglês. Certa vez colocaram:
"yelping up and down in indignation
like a puppy that's been stepped
upon"! Outra tentativa, tão infeliz
quanto: "yelping in triumph as did
Nelson Rodrigues's puppy upon
being run over"! O que será que passa pela cabeça de quem lê essas barbaridades? É um pouco constrangedor, mas o divertimento supera o
embaraço.
Com a crescente comunicação internacional, esse tipo de problema
será cada vez mais comum -mesmo
para economistas e escritores mambembes como eu. Como tratar, por
exemplo, coloquialismos, referências locais, jogos de palavras, frases
de efeito? São artifícios que dão sabor ao texto, mas podem se perder
na tradução, por melhor que ela seja.
Quando se faz a conversão para a
língua franca do mundo atual -o inglês-, muito se perde, irremediavelmente. Mas a língua inglesa tem, é
óbvio, suas riquezas e singularidades. E o problema existe também
para os escritores norte-americanos
ou ingleses que escrevem para uma
audiência internacional e têm seus
textos traduzidos para vários idiomas.
Gosto muito do romancista inglês,
de origem japonesa, Kazuo Ishiguro
(autor do livro que deu origem ao
longa-metragem "Os Vestígios do
Dia", com Anthony Hopkins e Emma Thompson). Li recentemente
uma coletânea das suas entrevistas
sobre literatura em que ele se debate, nem sempre de maneira muito
feliz, com o problema da comunicação simultânea com leitores de várias nacionalidades.
Diz Ishiguro (minha tradução):
"Com a homogeneização da literatura, algo muito crucial e vital desaparece: algumas das grandes energias que vêm do conhecimento que
alguém pode ter das suas circunstâncias locais, da língua que é usada
na sua própria cultura". E mesmo
assim, em outra entrevista, Ishiguro
confessa que se sente obrigado a
perguntar a si mesmo: "Essa frase
tem substância? (...) Ela sobrevive à
tradução?". Quando escreve, ele
sente ter por cima do ombro um leitor estrangeiro imaginário -um leitor exigente, que pode ter uma influência inibidora e paralisante.
Por isso, do canto modesto desta
coluna, repito: "Fora daqui, o FMI!".
PAULO NOGUEIRA BATISTA JR. , 53, escreve às quintas-feiras nesta coluna. Diretor-executivo no FMI, representa um grupo de nove países (Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Haiti, Panamá, República Dominicana, Suriname e Trinidad e Tobago).
pnbjr@attglobal.net
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