São Paulo, segunda-feira, 05 de agosto de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

Pacto federativo em xeque

FRANCISCO DE ALMEIDA E SILVA

A evolução, nos últimos anos, das receitas da União chama a atenção para dois pontos. O primeiro relaciona-se à elevação da carga tributária como proporção do PIB. O segundo, debatido em menor escala, refere-se à crescente participação das contribuições na arrecadação federal. Enfoca-se, aqui, a práxis tributária federal não em relação ao quantum, mas, sim, no aspecto qualitativo. O que se discute, brevemente, são as implicações para o "pacto federativo" da escolha, por parte da União, de centrar o esforço de arrecadação na cobrança de contribuições.
Alguns dados confirmam como esses tributos vêm ganhando espaço no total de receitas. O Imposto de Renda e o Imposto sobre Produtos Industrializados compõem o Fundo de Participação dos Estados (FPE) e o Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Informações divulgadas pela Receita Federal mostram que o IR, em 1996, representava 35,4% no total de receitas federais. Em 2001, essa participação relativa se reduzira a 33%.
O IPI respondia por 16,3% das receitas da União em 1996. A partir de 1997, o percentual foi sendo reduzido e atingiu 9,9% em 2001. Essa redução foi tão drástica que, apenas na passagem de 2000 para 2001, houve uma variação negativa de expressivos 7,48% na participação do IPI. Em contrapartida, as receitas das contribuições, que não são compartilhadas com os governos estaduais e municipais, exibem trajetórias diversas.
A CPMF, por exemplo, apresentava participação relativa de 6,1% no total de receitas em 1997. Três anos depois, o percentual passou a 8,2% e, em 2001, atingiu 8,7%. O salto de participação da Cofins é ainda mais significativo. Se em 1998 entrava com 14,1% do total, em 2001 foi responsável por cerca de 23,6%. Apenas entre 1998 e 1999 aumentou em 50% a participação relativa na composição das receitas federais.
Os números comprovam que a União, nos últimos anos, vem buscando receita por intermédio de tributos que não são divididos com as demais unidades federativas. Essa opção tem implicações deletérias tanto para a economia real como para as finanças municipais.
Pelo lado da economia real, contribuições como a Cofins e a CPMF pertencem ao conjunto daqueles tributos de pior qualidade. Por incidirem em cascata, oneram a cadeia produtiva e dificultam que seja atingida o que os economistas denominam de alocação eficiente de recursos. Em consequência, o pacto federativo é ferido em sua essência, pois se assiste, como resultado prático da ênfase na arrecadação de contribuições, à concentração das receitas dos tributos no caixa federal.
Ao mesmo tempo em que se concentram recursos na esfera federal, nota-se o esforço para promover a descentralização das despesas. Institui-se, então, a política de dois pesos e duas medidas, com as finanças municipais sendo duramente atingidas. Não é minha intenção discutir essa tendência de descentralização das despesas. Essa é uma política a ser seguida já que a maior proximidade entre os governos municipais e a população possibilita um melhor atendimento às demandas sociais. Em última instância, as administrações municipais, ao levar em consideração as necessidades locais, aumentam a eficiência das políticas públicas, levando-se em consideração que os recursos são escassos.
Questiono, contudo, o fato de a descentralização das despesas não ser acompanhada pela das receitas. Ao optar pela cobrança de contribuições, o governo federal dá prioridade à sua arrecadação em detrimento daquelas dos Estados e dos municípios. Assim, os municípios perdem receita de dois modos. Primeiro, não participam das receitas das contribuições. Depois, o esforço administrativo da União para tornar viável tal arrecadação retira da administração do IR e do IPI, que entram no cômputo do FPM, recursos materiais e humanos. Verifica-se, então, a redução da eficiência na arrecadação desses impostos.
Isso tudo ocorre quando municípios e Estados vêm contribuindo, cada vez mais, para a evolução satisfatória das finanças públicas nacionais. Para deixar claro o argumento, estabeleço o elo das unidades federativas com uma nova atividade financeira, diante da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Usarei dados das necessidades primárias de financiamento do setor público consolidado que, quando negativas, indicam a ocorrência de superávits primários.
Nos últimos anos, a ocorrência desses sinais negativos nas necessidades primárias tornou-se recorrente em Estados e municípios devido aos acordos entre o governo federal e o FMI que estipulavam metas de cumprimento de superávits. Grande parte do mérito pelo alcance dos superávits se deu pelas ações de Estados e municípios que, após a LRF, vêm procurando sanear as finanças.
Alguns dados reforçam tais argumentos. Em 1999, Estados e municípios participaram com 6,8% do resultado negativo das necessidades primárias de financiamento do setor público consolidado. As estatais apresentaram participação relativa igual a 20,3%. O governo federal e o Banco Central contribuíram com 72,9%. Em 2000, a participação relativa de Estados e municípios saltou para 15,8% e a das estatais atingiu 30,7%. Paralelamente, governo federal e BC diminuíram significativamente o percentual, chegando a 53,5%. No ano passado, mantiveram a queda e fecharam em 50,3%. As estatais também reduziram a participação para 25,7%. Em contrapartida, Estados e municípios registraram novo aumento, atingindo 24%. Resultado prático: estão se transformando em agências redutoras do déficit público da União.
Dessa forma, fica clara a "desfederalização financeira" no Brasil ao mesmo tempo em que municípios, como o Rio de Janeiro, procuram ampliar a eficiência da gestão financeira. Por isso, fica a pergunta, para reflexão: municípios que cumprem à risca os princípios de responsabilidade no trato da coisa pública recebem tratamento adequado do governo federal?
Diante do exposto, para não se atingir em cheio o pacto federativo, entendo que a União deveria incentivar duas medidas. No curto prazo, para evitar a punição financeira das unidades da federação, receitas obtidas com as contribuições deveriam ser compartilhadas com Estados e municípios, nos mesmos moldes em que estes participam da arrecadação do IPI e do IR por meio do FPE e do FPM. A longo prazo, faz-se necessária uma reforma tributária que reforce a tendência de descentralização das receitas, e não caminhe em sentido contrário. Com isso, o pacto federativo, consagrado na Constituição de 1988, manteria a trajetória de avanço histórico, com melhora qualitativa do atendimento às demandas sociais.


Francisco de Almeida e Silva é secretário municipal de Fazenda do Rio de Janeiro.

Texto Anterior: Missão continua negociando com o FMI
Próximo Texto: Dicas Folhainvest - Dicas: Bovespa escapa da turbulência do dólar, e ações viram ativos reais
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.