São Paulo, terça-feira, 05 de agosto de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

BENJAMIN STEINBRUCH

Quem perde com Doha


Com o subsídio americano a seus produtores, os agricultores africanos não terão chance de sobrevivência

TODO ARTICULISTA de economia já "enterrou" uma ou duas vezes a Rodada Doha. Eu a "sepultei" uma vez, em julho de 2006, depois do encerramento de negociações fracassadas em Genebra. Se publicasse novamente hoje esse texto de dois anos atrás, ninguém estranharia. Dizia que a rodada havia sido um fiasco porque os países ricos resistiram à idéia de reduzir significativamente os subsídios agrícolas, enquanto os emergentes deveriam cortar tarifas cobradas nas importações de produtos industrializados.
Naquela época, conclui o artigo dizendo que, a menos que uma fórmula mágica recolocasse de pé a rodada, a solução seria o Brasil caminhar rapidamente para acordos bilaterais, que facilitassem o comércio com blocos econômicos.
Dois anos se passaram e alguém encontrou a fórmula mágica de retomar as negociações na OMC (Organização Mundial do Comércio), mas o resultado foi novamente catastrófico. Na semana passada, apesar dos esforços da diplomacia brasileira para que houvesse algum acordo, as negociações de Genebra terminaram por um conflito entre Estados Unidos e Índia de natureza semelhante ao de dois anos atrás.
Outra vez a Rodada Doha foi "enterrada", agora talvez de forma definitiva. Não é o caso de voltar a comentar as causas desse desentendimento entre países ricos e remediados (emergentes). Já se gastou muita tinta com isso. Prefiro jogar alguma luz sobre as conseqüências desse fracasso, não para os desenvolvidos e os remediados, o Brasil entre esses, mas para os países mais pobres do mundo.
Sem o acordo de Doha, os EUA e a União Européia ficam livres para manter sua quase-criminosa política de subsídios à produção agrícola.
No pacto proposto pela UE no mês passado, os EUA, por exemplo, ficariam impedidos de conceder subsídios superiores a US$ 14,5 bilhões por ano a seus ricos produtores agrícolas. Sem o pacto, poderão livremente cumprir sua lei agrícola, que permite subsídios de US$ 289 bilhões em cinco anos, ou seja, até US$ 58 bilhões por ano.
As conseqüências desses subsídios serão dramáticas, como sempre foram, para os povos pobres. No oeste da África, mais de 10 milhões de pessoas de países que mal conseguimos localizar no mapa, como Burkina Fasso, Mali, Senegal e Benin, dependem fundamentalmente da produção e da industrialização do algodão para sua subsistência. Com a continuidade do subsídio americano a seus ricos produtores, os agricultores africanos não terão chance de sobrevivência. Seu produto não poderá competir com o algodão americano.
Durante os dez dias de negociações de Genebra da semana passada, o problema desses países africanos nem entrou em discussão, embora o ministro do Comércio de Burkina Fasso, Mamadou Sanou, lá estivesse com esse exclusivo objetivo. Também foram deixadas de lado discussões sobre o litígio de mais de 16 anos entre os países pobres do Caribe e da América Latina sobre as tarifas impostas pela UE para impedir a entrada de bananas na Europa -cada tonelada paga imposto de 176.
É lamentável que tudo isso tenha ocorrido em detrimento de países muito pobres. Mas, para o Brasil, o fracasso da Rodada Doha não configura um desastre. Como em 2006, a saída continua sendo a busca de acordos bilaterais que facilitem o comércio com outros blocos econômicos e abram mercados para os produtos brasileiros competitivos, agrícolas ou industrializados.


BENJAMIN STEINBRUCH, 54, empresário, é diretor-presidente da Companhia Siderúrgica Nacional, presidente do conselho de administração da empresa e primeiro vice-presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo).

bvictoria@psi.com.br


Texto Anterior: Petróleo: Temor sobre tempestade passa e preço do barril cai quase 3%
Próximo Texto: Vinicius Torres Freire: Déficit zero, ou "quase"
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.