UOL


São Paulo, quarta-feira, 05 de novembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

Menos pobre, muito mais desigual

MARCIO POCHMANN

A divulgação , nas duas últimas semanas, de indicadores sobre a situação social no país (desigualdade, fome, pobreza) não autoriza as futuras gerações de brasileiros a acusar as atuais por negligenciar a identificação do mais grave fenômeno que aflige a nação: a exclusão socioeconômica. O melhor conhecimento desse mal que atualmente atinge o povo é necessário, porém insuficiente, caso não venha acompanhado de medidas adequadas para o seu enfrentamento.
O Brasil precisa abandonar rapidamente a situação de letargia que leva autoridades e instituições a oferecer apenas e tão-somente uma visão contemplativa da pobreza. É como se o médico, diante do avanço tecnológico, dispusesse de melhor diagnóstico a respeito da manifestação de um tipo especial de câncer, permitindo até apresentar em seminários e publicar em revistas científicas seus estudos, sem que isso, no entanto, viesse a interferir nas receitas que continuaria a aplicar a seus pacientes.
Ademais, convém também chamar a atenção para a frieza dos indicadores sobre a situação social. De um lado, informa-se que o Brasil reduziu, nos anos 90, a mortalidade infantil significativamente, o que possibilitaria a melhora na qualidade de vida. Poucos atentaram para o fato de que parte significativa desse feito deve-se à contenção impositiva da quantidade de filhos entre as famílias de baixa renda, muitas submetidas à difusão de métodos contraceptivos questionáveis (alguns em troca de votos, outros sem a consciência da mãe).
Somente no município de São Paulo, por exemplo, houve nas duas últimas décadas queda no número médio de filhos nas famílias pobres de 8%, contra 4% para o total das famílias não-pobres. Em síntese: sem nascer, o filho do pobre não morre, da mesma forma que decaiu a participação do negro no total da população no final do século 19.
Guardada a devida proporção, o processo atual assemelha-se às teses valorativas do branqueamento da população brasileira na década de 1890, quando o crescimento vegetativo das famílias brancas era positivo (1,21% ao ano), e o das famílias negras, negativo (-0,625 ao ano). Esse "déficit negro", denunciado por Florestan Fernandes, não se devia a uma seleção natural, mas a um processo terrível de exclusão social.
De outro lado, chama a atenção o uso de indicadores que mostram a elevação no desenvolvimento humano de um determinado local, quando ali tem ocorrido aumento do desemprego, da desigualdade de renda e da violência. Como pode haver compatibilidade entre a melhora do desenvolvimento humano e a piora na qualidade de vida, denunciada pelo desemprego, concentração de renda e violência?
Possivelmente, está sendo utilizada uma lente limitada para focalizar algo muito mais complexo. Usando um indicador mais robusto sobre a exclusão social, o "Atlas da exclusão social no Brasil" (Cortez Editora, 2003), que leva em consideração sete variáveis -pobreza, emprego formal, desigualdade, índice de alfabetização, escolaridade, juventude e violência-, observa-se, por exemplo, que a sugestão de elevação no desenvolvimento humano ocorrida nos anos 90 no Brasil (melhora na frequência escolar, nos anos de vida e na renda per capita) está comprometida quando se observa que simultaneamente houve ampliação da desigualdade de renda, da violência e do desemprego.
Por fim, também é legítimo ressaltar a inadequada ênfase que vem sendo concedida ao recorrentemente uso do indicador de pobreza absoluta (medida de uma linha de renda tão-somente suficiente para permitir o consumo que atenda a necessidades físicas vitais). Não apenas por levar à subestimação importante da quantidade de pobres no país mas, fundamentalmente, pelo fato de focar as ações apenas no combate à pobreza. Vale ressaltar que esse combate é urgente e necessário, mas as medidas tomadas pelo poder público devem também enfrentar a escandalosa desigualdade e concentração de riqueza e acesso a bens e serviços no país.
A exemplo do município de São Paulo, onde a prefeitura, para reduzir pobreza e desigualdade e promover inclusão social e desenvolvimento econômico, implantou desde 2001 um conjunto de programas sociais que investem na manutenção dos atuais e na geração de novos postos de trabalho, na ampliação de escolaridade de crianças e jovens, na garantia de uma renda mínima para famílias com filhos em idade escolar, na concessão de microcrédito e no fomento a novos empreendimentos e cooperativas populares.
Mesmo utilizando os dados recém-divulgados do desenvolvimento humano, caberia perguntar o que aconteceu com os adeptos da teoria do capital humano. Como explicar que a desigualdade de renda aumentou nos últimos 20 anos, enquanto os indicadores de educação melhoraram? Será que ainda há quem ache, como era comum nos anos 70, que a desigualdade é mero reflexo da distribuição do acesso à educação?!
Nesse sentido, a utilização do indicador de pobreza relativa, que possibilita saber o quanto se é pobre em relação ao padrão de vida dos ricos no país, seria muito mais consistente com a estratégia de enfrentamento da exclusão social. Caso contrário, o país pode até continuar apresentando queda na taxa de pobreza, como verificado entre 1991 e 2000, sem que isso produza a queda necessária na desigualdade de renda. E, quando isso ocorre, situações correlatas como o desemprego e a violência permanecem "excluídas" da análise, não transparecendo que são partes pertencentes de mesmo todo complexo e integradas entre si.


Marcio Pochmann, 41, economista, professor licenciado do Instituto de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), é secretário do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da Prefeitura de São Paulo.

Hoje, excepcionalmente, a coluna de Antonio Barros de Castro não é publicada.


Texto Anterior: Analistas divergem sobre renovação com FMI
Próximo Texto: Luís Nassif: A reforma trabalhista
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.