São Paulo, domingo, 06 de outubro de 2002

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LUÍS NASSIF

Essa negra Fulô

O piano começa pianinho, entoando um choro de salão. É "Bambino", choro lírico de Ernesto Nazareth, no piano refinado de José Miguel Wisnik. É um choro lindo, dos meus prediletos, que incluí no CD "Roda de Choro", que lancei em 1995. E foi composto antes que os negros entrassem na roda e, através de Pixinguinha e do jazz, revirassem a música brasileira pelo avesso.
Dada a introdução, abrem-se as comportas do CD e, de dentro da caixa de som, como no poema de Jorge de Lima, sai nuinha essa negra Fulô. Aí, Fulô, quem te deu essa ginga, essa voz de moleque, esse molejo que domina os estilos e controla o tempo? Esse molejo de anca, como o andar preguiçoso de pantera, se transmitindo para a voz, fazendo com que o choro de salão ganhe o molejo da senzala, apenas escandindo as sílabas na marcação do ritmo, lento e sensual.
Na música de todos os tempos existem aquelas jóias que só serão identificadas aos poucos, aquele momento mágico que se perde na voracidade dos tempos atuais, e será recuperado anos depois por garimpeiros que, muitas vezes sem querer, descobrem as jazidas secretas.
Recentemente me caiu no colo "O Rio", do Tavinho Moura e Sérgio Santos. Agora, "Bambino", na interpretação de Elza Soares, no CD que marca seu relançamento, o "Do Cóccix até o Pescoço" e que é um clássico de todos os tempos, na interpretação da cantora.
Depois que a pantera entra com seu gingado, o arranjo se desdobra pelo violão de Swami Jr., pelo cavaquinho do Miltinho Tachinha, pelo clarinete de Proveta e pela percussão de Marcos Suzano, todos feras e todos reverentes à música e à deusa de ébano.
Elza nasceu em 1937. Seu auge foi nos anos 60, com sua voz rouca de cantora de jazz norte-americano, impressionando pela técnica e pelo balanço. Era a guerreira sobrevivente, que escapou da favela e da marginalidade e explodiu na música popular brasileira, representando a negritude, mas sem se fixar em nenhum movimento.
Já era das maiores cantoras do país, e prova disso é a faixa em que contracena com Elis Regina, no álbum "O Fino da Bossa", lançado alguns anos atrás. Mas sempre abominou a formalidade, a reverência. Sempre foi a negra Fulô, com sua lata d'água na cabeça, com seu gingado, malícia e uma generosidade que o país demorou a perceber.
Nos anos 60, em pleno sucesso, entrou em um lance arriscado, apaixonando-se por Mané Garrincha, o mais amado dos brasileiros, que largou mulher e sete filhas para ficar com ela.
Não faltaram acusações de oportunismo, de destruidora de lares, logo ela que nada tinha a ganhar, apenas a perder, para conservar sua paixão. Mané estava em plena decadência, Elza em franca ascensão. Terminado seu período, Garrincha mergulhou na bebida e na depressão. E, ao seu lado, sempre presente, a pantera guerreira, apoiando em todos os momentos, tendo um filho dele, jamais deixando de lado a solidariedade.
Depois os tempos passam, mudam, e pessoas relevantes mergulham no ostracismo, em um país que ainda abre pouco espaço para seus mitos. E, no entanto, ousaria dizer que, no universo feminino brasileiro, poucas mulheres tiveram a coragem e a envergadura de Elza. E, no universo vocal brasileiro, contam-se nos dedos as cantoras que chegaram ao seu nível.
Elza surgiu em pleno período da voz rouca, da onomatopéia vocal, assim como outras grandes do período, como Leni Eversong e Leny Andrade. Incorporou na sua voz o estilo de cantar do trio Johnny Alf, Agostinho dos Santos e Alaíde Costa. E foi misturando tudo, avançando, enfrentando todos os ritmos e harmonias.
No CD, produzido por Wisnik, Elza transita por Nazareth, pelo samba de morro, pelo rap, pelo experimental que Wisnik traz na veia. Seu ecletismo despertou a decepção de alguns ícones da cultura negra, como Nei Lopes, que lamentou a perda da referência.
Mas a dama negra da música brasileira está acima dos modismos e dos compromissos fechados com grupos. Quando sua voz de menina saiu da garganta de 65 anos, jovem, embalada, renovaram-se os tempos, renovou-se Nazareth. E o país voltou a prestar atenção na grande cantora que renasce para seu público. Essa negra Fulô...

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