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LUÍS NASSIF
Essa negra Fulô
O piano começa pianinho,
entoando um choro de salão. É "Bambino", choro lírico
de Ernesto Nazareth, no piano
refinado de José Miguel Wisnik.
É um choro lindo, dos meus prediletos, que incluí no CD "Roda
de Choro", que lancei em 1995. E
foi composto antes que os negros
entrassem na roda e, através de
Pixinguinha e do jazz, revirassem a música brasileira pelo
avesso.
Dada a introdução, abrem-se
as comportas do CD e, de dentro
da caixa de som, como no poema de Jorge de Lima, sai nuinha
essa negra Fulô. Aí, Fulô, quem
te deu essa ginga, essa voz de
moleque, esse molejo que domina os estilos e controla o tempo?
Esse molejo de anca, como o andar preguiçoso de pantera, se
transmitindo para a voz, fazendo com que o choro de salão ganhe o molejo da senzala, apenas
escandindo as sílabas na marcação do ritmo, lento e sensual.
Na música de todos os tempos
existem aquelas jóias que só serão identificadas aos poucos,
aquele momento mágico que se
perde na voracidade dos tempos
atuais, e será recuperado anos
depois por garimpeiros que,
muitas vezes sem querer, descobrem as jazidas secretas.
Recentemente me caiu no colo
"O Rio", do Tavinho Moura e
Sérgio Santos. Agora, "Bambino", na interpretação de Elza
Soares, no CD que marca seu relançamento, o "Do Cóccix até o
Pescoço" e que é um clássico de
todos os tempos, na interpretação da cantora.
Depois que a pantera entra
com seu gingado, o arranjo se
desdobra pelo violão de Swami
Jr., pelo cavaquinho do Miltinho
Tachinha, pelo clarinete de Proveta e pela percussão de Marcos
Suzano, todos feras e todos reverentes à música e à deusa de
ébano.
Elza nasceu em 1937. Seu auge
foi nos anos 60, com sua voz
rouca de cantora de jazz norte-americano, impressionando pela técnica e pelo balanço. Era a
guerreira sobrevivente, que escapou da favela e da marginalidade e explodiu na música popular brasileira, representando
a negritude, mas sem se fixar em
nenhum movimento.
Já era das maiores cantoras do
país, e prova disso é a faixa em
que contracena com Elis Regina, no álbum "O Fino da Bossa", lançado alguns anos atrás.
Mas sempre abominou a formalidade, a reverência. Sempre foi
a negra Fulô, com sua lata d'água na cabeça, com seu gingado, malícia e uma generosidade
que o país demorou a perceber.
Nos anos 60, em pleno sucesso,
entrou em um lance arriscado,
apaixonando-se por Mané Garrincha, o mais amado dos brasileiros, que largou mulher e sete
filhas para ficar com ela.
Não faltaram acusações de
oportunismo, de destruidora de
lares, logo ela que nada tinha a
ganhar, apenas a perder, para
conservar sua paixão. Mané estava em plena decadência, Elza
em franca ascensão. Terminado
seu período, Garrincha mergulhou na bebida e na depressão.
E, ao seu lado, sempre presente,
a pantera guerreira, apoiando
em todos os momentos, tendo
um filho dele, jamais deixando
de lado a solidariedade.
Depois os tempos passam, mudam, e pessoas relevantes mergulham no ostracismo, em um
país que ainda abre pouco espaço para seus mitos. E, no entanto, ousaria dizer que, no universo feminino brasileiro, poucas
mulheres tiveram a coragem e a
envergadura de Elza. E, no universo vocal brasileiro, contam-se nos dedos as cantoras que
chegaram ao seu nível.
Elza surgiu em pleno período
da voz rouca, da onomatopéia
vocal, assim como outras grandes do período, como Leni Eversong e Leny Andrade. Incorporou na sua voz o estilo de cantar
do trio Johnny Alf, Agostinho
dos Santos e Alaíde Costa. E foi
misturando tudo, avançando,
enfrentando todos os ritmos e
harmonias.
No CD, produzido por Wisnik,
Elza transita por Nazareth, pelo
samba de morro, pelo rap, pelo
experimental que Wisnik traz
na veia. Seu ecletismo despertou
a decepção de alguns ícones da
cultura negra, como Nei Lopes,
que lamentou a perda da referência.
Mas a dama negra da música
brasileira está acima dos modismos e dos compromissos fechados com grupos. Quando sua
voz de menina saiu da garganta
de 65 anos, jovem, embalada,
renovaram-se os tempos, renovou-se Nazareth. E o país voltou
a prestar atenção na grande
cantora que renasce para seu
público. Essa negra Fulô...
E-mail -
lnassif@uol.com.br
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