São Paulo, domingo, 07 de fevereiro de 2010

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ANÁLISE

A cura dos males do sul da Europa

NOURIEL ROUBINI
ARNAB DAS
DO "FINANCIAL TIMES"

Uma nova Grande Depressão pode ter sido evitada, mas a crise está longe de encerrada. O crédito está apertado e todos os pontos de alto endividamento da economia mundial estão sendo contagiados: os domicílios com pesadas dívidas hipotecárias (Islândia, Estados Unidos, Espanha, Irlanda, Europa central e oriental); os bancos (Islândia, Estados Unidos, União Europeia, Rússia e países da antiga União Soviética); a dívida quase pública (Naftogaz, da Ucrânia; Dubai World); e agora a Grécia e os outros elos vulneráveis na zona do euro.
A Grécia vivia havia muito à beira de um acidente, devido à pesada dívida pública e à falta de competitividade. Mas seus problemas nada têm de singular. Resolvê-los determinará o destino dos países vizinhos, o da zona do euro e talvez até o da própria União Europeia.
Incontinência fiscal e baixa competitividade estão entreligadas em muitos países do sul da Europa. A adesão ao euro e às "transações de convergência" em um mercado que vivia forte alta empurraram os rendimentos dos títulos públicos de Portugal, Itália, Grécia e Espanha para perto do rendimento dos títulos alemães. O boom de crédito subsequente sustentou o consumo, mas encobriu a inflação nos salários, que superou o ganho de produtividade e levou a Grécia a perder espaço nos seus tradicionais mercados de exportação.
Enquanto isso, a burocracia excessiva e a rigidez das leis trabalhistas, da indústria e dos mercados de serviços desencorajavam o investimento em setores de alto valor agregado, a despeito de salários bem inferiores à média da UE. A mistura nociva resultante entre os grandes deficit públicos e em conta-corrente resultou em dívida externa cada vez mais elevada. A dramática valorização do euro em 2008/2009 acentuou esses problemas.

Corte de gastos
À medida que cresce o rendimento dos seus títulos, Grécia e seus pares enfrentam escolhas difíceis. O melhor curso seria acompanhar países como Irlanda, Hungria e Letônia na adoção de planos fiscais confiáveis e pesadamente dependentes em cortes de gastos, que o governo pode controlar, em lugar de elevações de impostos e fechamento de lacunas tributárias que existiram por muito tempo em razão da fiscalização displicente. Isso poderia impor uma desvalorização interna com profundos cortes nos salários reais e reformas que estimulassem a competitividade, como aconteceu na Alemanha desde a reunificação.
A opção fácil seria recorrer a engenharia financeira e manobras fiscais, postergando o ajuste. Nesse cenário, o acesso ao mercado terminaria perdido, talvez já na metade de 2010. A Grécia teria então de recorrer aos demais países-membros em busca de empréstimos diretos (negados, pelo menos até o momento); ao Fundo Monetário Internacional (o que foi descartado até o momento); ou a credores não tradicionais, como a China (negados).
Alternativamente, poderia promover desvalorização, moratória e reordenação de seus passivos na forma de uma "nova dracma", à maneira argentina (impensável).
Um plano de austeridade confiável restauraria a solidariedade com os países da União Europeia que estão se ajustando, melhoraria a retórica do Banco Central Europeu (BCE) e dos países mais importantes do bloco e traria de volta à terra os ágios em disparada dos títulos gregos. A abordagem está funcionando na Irlanda, onde os ágios explodiram quando a dívida pública disparou, mas foram reduzidos depois de um corte de 20% nos gastos públicos. Mas a tarefa não é fácil. Portugal vem promovendo deflação para estimular sua competitividade já há uma década. Se o sabor do remédio é ruim, melhor tomá-lo rápido.

Socorro
O ajuste da Grécia idealmente contaria com o apoio de um grande programa do FMI a fim de prevenir uma corrida à dívida pública e aos bancos nos momentos difíceis que surgirão. Em um plano apenas europeu, a Comissão Europeia poderia monitorar os ajustes, e o BCE lideraria os empréstimos. Mas nenhuma dessas instituições está acostumada a impor condições aos seus membros, enquanto o FMI tem nessa a sua principal tarefa. O recurso ao FMI foi descartado porque sinalizaria fraqueza. Mas um plano que se baseie apenas nos mecanismos da União Europeia poderia ser visto como manobra escusa pelas partes interessadas, dados os riscos que a quebra da Grécia acarretaria para a Europa.
Caso as decisões duras requeridas não sejam tomadas, isso atrairia atenção para uma verdade histórica desconfortável: a de que nenhuma união monetária sobreviveu sem união fiscal e política. O contraste entre a zona do euro e os Estados Unidos pode se tornar ainda mais sombrio. Muitos dos Estados norte-americanos também enfrentam problemas fiscais, mas a crise pode ser resolvida em nível federal. Caso transferências não bastem para tanto, há um capítulo na lei de falências dedicado às administrações locais e estaduais. A zona do euro não conta com mecanismos como esse para compartilhamento do ônus.
A história das demais economias retardatárias na zona do euro é diferente em grau, mas não em princípio. Todas apresentam pesado endividamento, e a fonte principal de contágio financeiro, a Espanha, tem um imenso passivo público contingente no setor bancário, como aconteceu na Irlanda, em resultado da dívida hipotecária. O modelo de crescimento do país -de construção residencial propelida por um boom na habitação- está extinto.
A Espanha também precisa de consolidação fiscal e de reforma estrutural a fim de restaurar a sustentabilidade de sua dívida, revigorar o crescimento e reduzir o índice de desemprego de 20%. O governo da Itália está pesadamente endividado e, por isso, o país também precisa cortar gastos e reconquistar a competitividade. Portugal necessita urgentemente de reformas estruturais que restaurem seu dinamismo econômico e sua saúde fiscal.
A Grécia, portanto, está na linha de frente de uma batalha mais ampla para manter o rumo exigido pela união monetária europeia. O compromisso político de cada um dos países ameaçados para com a zona do euro é inflexível, como provam os profundos cortes no Orçamento na Irlanda, a dolorosa deflação em Portugal, os fortes ajustes em membros aspirantes como Hungria e Letônia.
A falta de uma união política e fiscal e a mobilidade limitada de mão de obra acompanhada por livre movimento de capitais tornam a realização desses ajustes crítica para a viabilidade da zona do euro em longo prazo.
Idealmente, regras formais para compartilhar o ônus fiscal deveriam ser desenvolvidas, de forma a conferir mais poder às cláusulas de proibição de resgate, como mecanismos de reestruturação de dívidas para os títulos soberanos da zona do euro. De outra forma, as dúvidas sobre a sustentabilidade da união monetária europeia retornarão a cada crise. Mais cedo ou mais tarde, essas dúvidas serão validadas.

NOURIEL ROUBINI é presidente, e ARNAB DAS , diretor de pesquisa de mercado da Roubini Global Economics.

Tradução de PAULO MIGLIACCI



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