São Paulo, segunda-feira, 07 de junho de 2004

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ENERGIA

Para ex-presidente da estatal, governo intervém em excesso e trata a empresa apenas como "geradora de superávit"

Falta autonomia à Eletrobrás, diz Pinguelli

PEDRO SOARES
DA SUCURSAL DO RIO

O ex-presidente da Eletrobrás Luiz Pinguelli Rosa, 62, defendeu que o governo dê mais autonomia à estatal de energia e deixe de intervir no "dia-a-dia" da empresa, que precisa ter "autonomia".
Em sua primeira entrevista exclusiva desde que foi demitido do cargo, entregue a Silas Rondeau, indicado pelo PMDB, Pinguelli afirmou que a Eletrobrás é tratada como "uma geradora de superávit", e não de energia, e por isso é impedida de investir e liderar a expansão do setor.
Segundo ele, o Planalto tem a "ilusão" de que a iniciativa privada fará todos os investimentos necessários no setor elétrico.
"O que predomina é a política macroeconômica: vamos catar dólares, vale qualquer coisa, até urânio", disse Pinguelli, referindo-se a um suposto acordo, depois negado pelo governo brasileiro, para a exportação do minério para a China.
Pinguelli narrou discussões com a ministra Dilma Rousseff (Minas e Energia) e com Joaquim Levy (secretário do Tesouro), com quem "saiu no pau".
Para o físico, que voltou à Coppe (Coordenação de Programas de Pós-Graduação em Engenharia) da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) após deixar a estatal, o governo Lula não tem uma política energética. O novo modelo é apenas um marco regulatório. Falta olhar "adiante", afirmou na entrevista.
Embora diga continuar apoiando o governo, ele responsabiliza o presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelos obstáculos que encontrou ao dirigir a Eletrobrás. "A responsabilidade é do presidente Lula. Eu cobro tudo do Lula. Ele foi o eleito." Abaixo, os principais trechos da entrevista.

 

Folha - Qual foi o motivo de sua saída da Eletrobrás?
Luiz Pinguelli Rosa -
Houve toda uma cronologia. Numa reunião com todos os diretores de estatais [em setembro do ano passado] e com a ministra Dilma [Rousseff, de Minas e Energia], surgiu uma questão entre um colega [de direção da Eletrobrás] e o ministério. Eu saí em defesa dele. Isso me levou a um confronto com a Dilma. Naquele instante, declarei que por causa do incidente estava "pedindo as contas" da Eletrobrás.

Folha - Qual foi o ponto de discórdia?
Pinguelli -
Tinha relação com o novo modelo, particularmente com as federalizadas, empresas [distribuidoras das regiões Norte e Nordeste] provisoriamente incluídas no grupo Eletrobrás que são deficitárias e não tiveram nenhum plano de salvamento do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social].

Folha - Na sua visão, o que faltou ao novo modelo?
Pinguelli -
Seria uma medida complementar, mas eu queria uma solução para a perda de receita de Furnas [causada pela descontratação de energia, imposta pelo modelo anterior, que liberava 25% dos contratos bilaterais com as distribuidoras a cada ano]. Isso poderá dificultar muito até o superávit primário deste ano e os investimentos de Furnas.

Folha - A descontratação é o grande problema do setor?
Pinguelli -
Não. O grande erro de todo o governo, e a Dilma e o ministério estão dentro do governo, é a crença de que o investimento privado por si só basta para a expansão do setor, deixando o maior grupo do país [Eletrobrás] em uma posição indefinida. Obviamente que a maior empresa elétrica do país tem de puxar os investimentos. A Eletrobrás tem de ser idêntica à Petrobras, o que significa menor intervenção do governo no dia-a-dia da empresa. Tem de blindar a empresa. Os órgãos de Estado, inclusive as estatais, têm de ter missão e autonomia.

Folha - Quem mais intervinha?
Pinguelli -
O governo todo. Mas o pior problema era com o Tesouro Nacional. Quando eu tive uma reunião com o presidente Lula e a Dilma, saí no pau com o Joaquim Levy. Ele não considerava [na meta de superávit] a parte de Itaipu transferida ao Tesouro, que foi de US$ 1 bilhão no ano passado. É como se essa parte não fosse da Eletrobrás. Daí eu disse: "Vem cá, em primeiro lugar, eu sou contra o superávit primário, me desculpe, presidente. Eu cumpro porque sou da sua equipe e a ordem é essa. Mas devo declarar que a minha empresa, que é uma geradora elétrica, parece que é só uma geradora da superávit primário".

Folha - E qual foi a posição da ministra Dilma?
Pinguelli -
A Dilma é uma pessoa disciplinada. Ela encara a posição do governo.

Folha - O senhor chegou a balançar na reforma ministerial ocorrida em janeiro?
Pinguelli -
Com a idéia de mudança do ministério, eu fui procurado, em nome do governo, para saber se aceitaria um ministério da reforma universitária. Eu disse que não. Depois [no mês de abril], houve o final feliz, como todo mundo sabe, quando houve a reunião com o PMDB e o presidente declarou... [que gostava muito do Pinguelli, mas que ele não dava nenhum voto no Senado].

Folha - Depois disso, o senhor falou com o presidente Lula?
Pinguelli -
Estamos para conversar agora. Deve ser no dia 9.

Folha - O que o senhor vai falar ao presidente?
Pinguelli -
Vou falar tudo o que penso, das realizações da Eletrobrás no ano passado, se ele abrir espaço. O detalhe técnico que o governo não faz idéia. O governo nutre a ilusão de que pode deixar a Eletrobrás na geladeira que o setor privado, em particular o estrangeiro, vai fazer todo o investimento.

Folha - O senhor crê no discurso de que só uma política fiscal austera e inflação controlada é que darão as bases para um crescimento sustentado?
Pinguelli -
A intenção é boa. Eles acham que isso é a solução. Mas o perigo é o doente morrer antes de o remédio fazer efeito. Há outros problemas. Por exemplo: não temos problemas de energia elétrica porque a economia não está crescendo. Na medida em que a indústria e a renda cresçam, vai faltar energia. Já estamos no limite para fazer novos investimentos. Sem energia, há um gargalo no desenvolvimento e pode até ser gerada uma recessão.

Folha - Quando o senhor diz "matar o doente", imagina que o país possa caminhar para uma moratória?
Pinguelli -
Não. Deixa eu falar da minha especialização. O Brasil, por exemplo, não tem política energética. Só tem uma política macroeconômica bem-sucedida do ponto de vista do controle da moeda. Tem também uma política externa e de comércio exterior. Mas em muitas áreas não tem.

Folha - E o que o governo fez durante esse ano e meio?
Pinguelli -
O governo faz muita coisa. Teve um trabalho monstruoso para fazer o novo modelo [do setor elétrico], mas ele perdeu um pouco a visão estratégica.

Folha - O senhor se sente decepcionado com o governo Lula?
Pinguelli -
Decepcionado não é a palavra. Fico pensando que faltou alguma coisa, que poderia ser melhor. E poderia. O caso da energia é um bom exemplo. Não pode ficar segurando a Eletrobrás. Não pode ser o Joaquim Levy que pensa a energia no Brasil.

Folha - Foi ele quem mais colocou obstáculos?
Pinguelli -
O Levy cumpre uma missão. A responsabilidade é do presidente Lula. Eu cobro tudo do Lula. Ele foi eleito. Deram a tarefa a ele [Levy] de segurar o dinheiro. E ele segura.

Folha - Como o senhor viu a história do suposto acordo, que depois ficou só na intenção, de exportar urânio para a China?
Pinguelli -
Exportar urânio natural [não-enriquecido] é um negócio mixuruca, vagabundo. Depois, o ministro [Eduardo Campos, de Ciência e Tecnologia] declarou que não havia acordo nenhum. Não há como ganhar muito dinheiro com isso. O que interessa [ao governo brasileiro] é ganhar. É uma política de exportação. O que predomina é a política macroeconômica: vamos catar dólares, vale qualquer coisa, até urânio.


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