|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OPINIÃO ECONÔMICA
A face visível da desigualdade
RUBENS RICUPERO
Será que a presença no topo
da cultura brasileira de negros
e mestiços reconhecidos como tais
é hoje menos notável do que no
tempo de Machado de Assis, Cruz
e Souza e Lima Barreto? Se o conde de Gobineau ressuscitasse, reafirmaria o que escrevia ao governo
francês: "O senhor Barão de Cotegipe, atual ministro das Relações
Exteriores, é mulato; no Senado,
há homens dessa categoria; em
uma palavra, quem diz brasileiro
diz, com raras exceções, homem
de cor". E o principal: "Eles estão
em todos os escalões sociais". Será
verdade em 2001, como era em
1869?
A evocação de um dos pais do
racismo "científico", cujo "Ensaio
sobre a desigualdade das raças
humanas" teria tanta influência
nas nefastas doutrinas do século
20, é oportuna quando se realiza
no Rio de Janeiro a Conferência
contra o Racismo e a Intolerância.
Ministro da França no Brasil, afirmou que o país era habitado por
"uma população toda mulata,
com sangue viciado, espírito viciado e feia de meter medo... As melhores famílias têm cruzamentos
com negros e índios... A imperatriz
tem três damas de honra: uma
marrom, outra chocolate claro e a
terceira violeta".
Frequentador assíduo de Pedro
2º, excetuava-o do panorama geral: "Salvo o imperador, não há
ninguém neste deserto povoado de
malandros". "O inimigo cordial
do Brasil", como o chamou Georges Raeders em estudo redimido
do esquecimento por bela tradução de Rosa Freire d'Aguiar, foi
detrator audacioso do país, prevendo que em 270 anos a inteira
população se extinguiria devido à
mestiçagem. Pelo seu esdrúxulo
critério, a cada 30 anos desaparecia 1 milhão de mulatos. Como ele
escrevia por volta de 1870, ainda
temos pela frente cem anos de prazo e de esperança...
Resgatei do limbo essas pérolas
da humana insensatez para recordar apenas que o moderno racismo tem bases pseudocientíficas
tão desvairadas e ridículas como
suas consequências foram monstruosas. No que se refere a nós, Gobineau atirou no que supostamente viu -a extinção da mestiçagem-, mas acertou no que não
viu -o esmaecimento da visibilidade de negros em posições eminentes, como era frequente em sua
época e passou a ser raro na nossa.
As razões são fáceis de identificar: o maciço aumento da imigração a partir de 1870 coincide com
o abandono da população negra e
mestiça após a Abolição, dando
como resultado a monopolização
pelos imigrantes e descendentes
da educação, dos melhores empregos e das oportunidades de mobilidade social. Se no Império negros
ou mulatos alcançavam muitas
vezes os pontos mais altos da vida
social, nas gerações seguintes as
categorias que permanecem acessíveis aos herdeiros da escravidão
seriam somente as de músico popular e futebolista, isto é, as que
dependem exclusivamente de talento natural, não de educação
formal. Pouco tem isso a ver com o
progresso material ou o da instrução pública. Quando um e outro
eram escassos, Machado de Assis,
Luís Gama, Rebouças, Cruz e Souza e tantos outros conseguiram
impor-se, não se repetindo igual
safra depois que melhorou a economia e a educação.
De novo, a explicação é simples:
a miséria e a desigualdade extremas não desaparecem automaticamente, por efeito espontâneo da
mão invisível do desenvolvimento
econômico e educacional. Sua natureza é de armadilha que tende a
se auto-perpetuar e renovar nos filhos as condições que infelicitaram a vida dos pais. Às vezes, um
acidente -um padre-mestre, como no caso de Machado de Assis,
uma família de adoção- rompe
a cadeia. Mas, deixada a si mesma, a desigualdade não se acaba,
como acreditam ou fingem acreditar os governos brasileiros, infelizmente sem honrosas exceções.
Se faltassem estudos, um recente
do Ipea, de junho, de Lauro Ramos e Maria Lucia Vieira, concluía que "os níveis observados
(da desigualdade) em 1999 foram,
para todos os efeitos práticos, os
mesmos de 1981, deixando claro
que a realidade distributiva no
Brasil permanece sendo pautada
por uma iniquidade intolerável".
A cara mais visível da desigualdade é o contraste de cor entre qualquer auditório universitário e as
gerais dos estádios de futebol.
Quando uma vez fiz essa observação na Unicamp, disseram-me depois que os dois ou três negros presentes eram todos bolsistas cubanos ou angolanos...
É preciso insistir e clamar, oportuna e inoportunamente, que a
teoria do "trickle down effect", da
jarra transbordante ou da prioridade de aumentar o bolo nunca
funcionaram nem na China nem
nos EUA. Não basta aumentar a
riqueza ou expandir e melhorar a
educação. São indispensáveis políticas distributivas e, em matéria
de desigualdade racial, políticas
corretivas e compensatórias das
injustiças e desequilíbrios do passado. Não faltam exemplos nos
EUA, na Malásia, na França com
a lei sobre a exclusão. Trata-se de
promover, com ajuda financeira e
de todo tipo, o acesso à educação e
a empregos, no governo ou fora
dele (os americanos têm o "Equal
Opportunity Employment"). Essas
ações devem ser direcionadas a alvos determinados, grupos particularmente carentes, famílias de
renda ínfima, mães abandonadas. Deve-se incentivar iniciativas
privadas, como as bolsas para estudantes negros do BankBoston.
Os governos, as igrejas, as universidades, as empresas têm de formular planos para aumentar o recrutamento acoplado ao treinamento de pessoas desses grupos.
Programas como o da renda mínima vinculado a bolsas seriam instrumentais nesse sentido.
Acabamos de perder Milton
Santos, uma das raras exceções
que confirmaram a regra: seus
pais eram professores primários. A
fim de ter muitos como ele, a conferência do Rio tem de aumentar
a mobilização em favor de políticas compensatórias. Como está na
moda importar o modelo americano, quem sabe o que é bom para
os EUA também seja bom nesse
caso para o Brasil, com as devidas
adaptações. Desde, é claro, que tenhamos aqui como lá Congresso,
corte suprema e presidente dispostos a usar a força do Estado para
promover a mudança social.
Rubens Ricupero, 64, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail -
rubensricupero@hotmail.com
Texto Anterior: Tendências internacionais - Nancy Dunne: Atraso na proposta dos EUA sobre a Alca recebe críticas Próximo Texto: Opinião econômica - Aloizio Mercadante: As raízes da crise Índice
|