São Paulo, quarta, 8 de outubro de 1997.




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LUÍS NASSIF
Não habemus papa, deo gratias

Raras vezes a posição imperial da Igreja Católica se manifestou tão claramente como no momento em que, fortalecido pela presença do papa no país, dom Lucas Moreira Neves, cardeal primaz do Brasil, exigiu a retificação das declarações dadas pela cidadã Ruth Cardoso, em defesa do aborto.
Dom Lucas não tem divisões de exército. É improvável até que tenha cacife eleitoral. Mas permanece autêntico representante de tempos imemoriais, quando as famílias tradicionais distribuíam seus filhos entre a igreja, o Exército, a diplomacia e a política -e as decisões do país se resolviam nas casas de uma elite responsável por uma das sociedades mais injustas deste século.
É primo do ex-presidente Tancredo Neves e de uma penca de generais e diplomatas que marcaram a história do país. Não é dotado, como o cardeal Arns, de impulsos quase ingênuos de generosidade. Nem sequer usa a generosidade como instrumento de intervenção política.
Como nenhum outro religioso brasileiro, dom Lucas encarna à perfeição o papel de príncipe da igreja. Tem a alma dura, as feições duras, as atitudes duras dos grandes comandantes, dos especialistas em palácios. Ele só se compraz com o exercício pleno da diplomacia religiosa, de quem quer o que é Deus, e o que é de César.
No episódio do chute na santa, perpetrado por um bispo irresponsável da Igreja Universal, coube a ele alimentar o paroxismo inquisitorial que quase explode em guerra religiosa. Quem impediu foi a solidariedade intuitiva e generosa do cardeal Arns.
Na Bahia, sua primeira atitude foi agir contra o sincretismo religioso. Deve ser de sua inspiração a ofensiva da igreja para tentar impor novamente o ensino religioso nas escolas.
Moral e política
Em sua posição -dele e do papa- contra o aborto, não se pense em princípios morais, posturas de consciência e outras condicionantes individuais que norteiam as ações dos homens comuns. Assim como a guerra é extensão da diplomacia, para a igreja e seus príncipes as regras morais são parte integrante do exercício do poder. Não fosse assim, tratariam de condenar a indústria de armamentos -como bem lembrou frei Betto.
A igreja não possui divisões armadas, nem território, nem capacidade fiscal. Sua atividade política e diplomática foi se esboroando à medida que o mundo se tornava mais complexo e o habitat natural da igreja -as famílias- passou a ser bombardeado por influências muito mais orgânicas, da democracia e da moderna sociedade da comunicação.
A conquista da cidadania, em todos os níveis, amplia de maneira irreversível o conceito do livre arbítrio, das decisões individuais, acabando com todas as formas de autoritarismo -da ditadura política à ditadura dos "especialistas".
As emanações de ordem hierárquicas perdem sentido; mais ainda, as dogmáticas. Qualquer organização precisa conquistar corações e mentes de pessoas livres, para poder exercitar seu poder.
Centralização
A igreja se comprometeu basicamente por sua posição centralizadora, da grande organização que perdeu a sensibilidade nas pontas que atuam diretamente perante o seu consumidor.
O resultado é o abuso das posições morais primárias, como instrumento de dominação sobre um rebanho cada vez mais disperso -desde a inacreditável posição contrária aos preservativos, até a condenação do aborto.
É processo que atinge indistintamente "conservadores", como dom Lucas, e "revolucionários", como os padres ativistas de periferia. Na recente "marcha dos oprimidos" em Aparecida, empenhado em preservar seu espaço político junto ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, um bispo auxiliar do cardeal Arns chegou a relacionar a repressão ao MST, o Proer, a morte do índio pataxó e o aborto na relação dos grandes crimes do neoliberalismo e da globalização. Deixou de fora apenas a torcida do Flamengo.
Consequência: em um momento em que a espiritualidade passa a ser uma das tendências dominantes da humanidade, a Igreja Católica perde cada vez mais espaço. Junto aos mais simples, é comida pela borda pelos evangélicos; junto aos mais sofisticados, por religiões que preservam a individualidade das pessoas. Na base, conserva espaço apenas junto a grupos toscamente politizados; no topo, junto a velhas famílias, muitas de extrato agrário, que compuseram o pacto conservador brasileiro deste século.
Ao ameaçar dona Ruth Cardoso, por sua posição pró-aborto, dom Lucas pensava estar enfrentando César. Não estava. Dona Ruth falava em nome de uma entidade muito mais permanente e poderosa que a Presidência: uma opinião pública esclarecida de quem se pode discordar, jamais impor posições. Nem com ameaças de excomunhão nem de fogueiras inquisitoriais.

E-mail: lnassif@uol.com.br



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