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LUÍS NASSIF
Não habemus papa, deo gratias
Raras vezes a posição imperial da Igreja Católica se manifestou tão claramente como
no momento em que, fortalecido pela presença do papa
no país, dom Lucas Moreira
Neves, cardeal primaz do
Brasil, exigiu a retificação
das declarações dadas pela
cidadã Ruth Cardoso, em defesa do aborto.
Dom Lucas não tem divisões de exército. É improvável até que tenha cacife eleitoral. Mas permanece autêntico representante de tempos
imemoriais, quando as famílias tradicionais distribuíam
seus filhos entre a igreja, o
Exército, a diplomacia e a
política -e as decisões do
país se resolviam nas casas de
uma elite responsável por
uma das sociedades mais injustas deste século.
É primo do ex-presidente
Tancredo Neves e de uma
penca de generais e diplomatas que marcaram a história
do país. Não é dotado, como
o cardeal Arns, de impulsos
quase ingênuos de generosidade. Nem sequer usa a generosidade como instrumento
de intervenção política.
Como nenhum outro religioso brasileiro, dom Lucas
encarna à perfeição o papel
de príncipe da igreja. Tem a
alma dura, as feições duras,
as atitudes duras dos grandes
comandantes, dos especialistas em palácios. Ele só se
compraz com o exercício pleno da diplomacia religiosa,
de quem quer o que é Deus, e
o que é de César.
No episódio do chute na
santa, perpetrado por um bispo irresponsável da Igreja
Universal, coube a ele alimentar o paroxismo inquisitorial que quase explode em
guerra religiosa. Quem impediu foi a solidariedade intuitiva e generosa do cardeal
Arns.
Na Bahia, sua primeira atitude foi agir contra o sincretismo religioso. Deve ser de
sua inspiração a ofensiva da
igreja para tentar impor novamente o ensino religioso
nas escolas.
Moral e política
Em sua posição -dele e do papa- contra o aborto, não se pense em princípios morais, posturas
de consciência e outras condicionantes individuais que norteiam
as ações dos homens comuns. Assim como a guerra é extensão da
diplomacia, para a igreja e seus
príncipes as regras morais são
parte integrante do exercício do
poder. Não fosse assim, tratariam
de condenar a indústria de armamentos -como bem lembrou
frei Betto.
A igreja não possui divisões armadas, nem território, nem capacidade fiscal. Sua atividade
política e diplomática foi se esboroando à medida que o mundo se
tornava mais complexo e o habitat natural da igreja -as famílias- passou a ser bombardeado
por influências muito mais orgânicas, da democracia e da moderna sociedade da comunicação.
A conquista da cidadania, em
todos os níveis, amplia de maneira irreversível o conceito do livre
arbítrio, das decisões individuais, acabando com todas as
formas de autoritarismo -da ditadura política à ditadura dos
"especialistas".
As emanações de ordem hierárquicas perdem sentido; mais ainda, as dogmáticas. Qualquer organização precisa conquistar corações e mentes de pessoas livres,
para poder exercitar seu poder.
Centralização
A igreja se comprometeu basicamente por sua posição centralizadora, da grande organização
que perdeu a sensibilidade nas
pontas que atuam diretamente
perante o seu consumidor.
O resultado é o abuso das posições morais primárias, como instrumento de dominação sobre
um rebanho cada vez mais disperso -desde a inacreditável posição contrária aos preservativos,
até a condenação do aborto.
É processo que atinge indistintamente "conservadores", como
dom Lucas, e "revolucionários",
como os padres ativistas de periferia. Na recente "marcha dos
oprimidos" em Aparecida, empenhado em preservar seu espaço
político junto ao Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra,
um bispo auxiliar do cardeal
Arns chegou a relacionar a repressão ao MST, o Proer, a morte
do índio pataxó e o aborto na
relação dos grandes crimes do
neoliberalismo e da globalização.
Deixou de fora apenas a torcida
do Flamengo.
Consequência: em um momento em que a espiritualidade passa
a ser uma das tendências dominantes da humanidade, a Igreja
Católica perde cada vez mais espaço. Junto aos mais simples, é
comida pela borda pelos evangélicos; junto aos mais sofisticados,
por religiões que preservam a individualidade das pessoas. Na
base, conserva espaço apenas
junto a grupos toscamente politizados; no topo, junto a velhas
famílias, muitas de extrato agrário, que compuseram o pacto
conservador brasileiro deste século.
Ao ameaçar dona Ruth Cardoso, por sua posição pró-aborto,
dom Lucas pensava estar enfrentando César. Não estava. Dona
Ruth falava em nome de uma
entidade muito mais permanente
e poderosa que a Presidência:
uma opinião pública esclarecida
de quem se pode discordar, jamais impor posições. Nem com
ameaças de excomunhão nem de
fogueiras inquisitoriais.
E-mail: lnassif@uol.com.br
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