São Paulo, sábado, 09 de março de 2002

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ARTIGO

Aço mostra que Bush não se importa com princípios que defende

PAUL KRUGMAN

Ainda alguns dias atrás, havia partidários de George W. Bush esperando que ele exibisse sua força resistindo às demandas de proteção tarifária da indústria siderúrgica. Em lugar disso, ele cedeu, com uma abjeção que surpreendeu até mesmo aqueles que o criticam.
É um sério contraste com Bill Clinton, que -como Bush- declarou sua crença nos benefícios do livre comércio, mas que -diferentemente de Bush- se dispôs a investir um montante elevado de capital político em apoio a essa crença. Muitos democratas são protecionistas, de modo que Clinton procurou por apoio republicano para aprovar tanto o Nafta (a zona de livre comércio entre os EUA, o Canadá e o México) quanto o tratado de criação da OMC.
Clinton desafiou imensa oposição de ambos os partidos para resgatar o México de sua crise financeira de 1995, que poderia ter destruído o Nafta, e resistiu à pressão pela limitação de importações, entre as quais as de aço, durante a crise financeira asiática de 1997-1998.
É possível que a determinação de Clinton de fazer aquilo em que acreditava quanto ao comércio internacional tenha custado a Casa Branca aos democratas não só porque os votos da Virgínia Ocidental deram a Bush sua margem de vitória no colégio eleitoral, mas porque as políticas de defesa do livre comércio adotadas por Clinton alimentaram a campanha alternativa de Ralph Nader.
Agora sabemos com certeza aquilo que alguns de nós já suspeitávamos: que o governo Bush pode parecer sério quanto a livre comércio, mas não o é, e o mesmo vale provavelmente para os mercados livres em geral.
Não interessa a alegação de Bush de que sua decisão de impor tarifas elevadas sobre o aço importado era simplesmente uma questão de aplicar a lei. Nada na lei norte-americana o obrigava a impor tarifas, e está claro que essas violam os tratados internacionais de comércio americanos.
Podemos também descartar a alegação de que a medida representa "um alívio temporário para que o setor siderúrgico possa se reestruturar". As siderúrgicas tradicionais estão em um processo de declínio a longo prazo, como resultado menos da importação do que da competição das chamadas mini-usinas, exacerbada pelo fato de que uma economia cada vez mais orientada a serviços usa muito menos aço por dólar do PIB do que no passado. Uma tarifa temporária sobre as importações não inverterá essa tendência.
É verdade que a indústria siderúrgica sofre de um problema especial: os "custos herdados", benefícios que as companhias siderúrgicas prometeram a trabalhadores hoje aposentados, em dias mais prósperos; eles também tornam mais difícil para a indústria se reorganizar, porque nenhum investidor quer comprar uma companhia sobrecarregada com um imenso passivo.
Mas os economistas descobriram há muito que as restrições à importação são a maneira errada de lidar com os problemas domésticos. Esses problemas deveriam, em lugar disso, ser enfrentados na fonte -no caso em questão, por meio de um plano que levasse o governo a assumir a responsabilidade por pelo menos parte desse passivo. Tentar mitigar o problema com tarifas será muito menos efetivo, e imporá sérios danos colaterais. Como declarou um crítico severo das medidas do governo, as tarifas "não são mais do que impostos que prejudicam as pessoas de renda baixa e moderada".
Oh, lamento -não se trata de um crítico do governo, mas de Robert Zoellick, o representante do governo Bush para assuntos de comércio internacional, em declaração feita algumas semanas antes que seu líder decidisse que protecionismo, em busca de vantagem política, não é vício.
Se Bush realmente acreditava que precisava fazer alguma coisa pela indústria siderúrgica, por que não tratar dos custos herdados? Sua desculpa -que uma ação desse tipo cabe ao Congresso, e não à Casa Branca- não passa de uma débil (e característica) tentativa de transferir a culpa exatamente como sua alegação de que estava só cumprindo a lei (será que sou o único que pensa nesse governo como a administração "a culpa é do Joãozinho"?). O verdadeiro motivo, presumivelmente, era que apoio direto à indústria seria um item explícito no Orçamento, enquanto os custos do protecionismo -se bem que muito maiores- se mantêm em sua maior parte ocultos.
Além de representarem mau uso da economia, as tarifas sobre o aço são terríveis diplomaticamente. Nossos aliados mais firmes estão indignados. Mesmo antes do veredicto sobre o aço, os EUA já vinham desenvolvendo uma reputação por hipocrisia -prontos e dispostos a criticar os outros por não cumprirem suas responsabilidades, mas nada dispostos a encarar as próprias. Agora que nossa retórica sobre o livre comércio se provou vazia, quem escutará quando pregarmos?
Sejamos claros. Muitos democratas estavam do lado errado na questão do aço. Mas cabia a Bush demonstrar liderança e mostrar que ele se importa com os princípios que defende. Acho que não.


Paul Krugman, economista, é professor na Universidade Princeton (EUA). Este artigo foi publicado originalmente no "The New York Times".

Tradução de Paulo Migliacci


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