São Paulo, sexta-feira, 09 de julho de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

O verdadeiro jogo

LUÍS EDUARDO ASSIS

Em que pese a recente derrota na votação do salário mínimo, as coisas parecem melhorar para o governo no que diz respeito ao crescimento da economia. Vive-se o clima de que o pior já passou e de que o país segue firme na trajetória de crescimento acelerado. Pagamos caro pelo ajuste, com juros altos e desemprego, mas tudo dará certo nesta China tropical. É curioso notar que a atmosfera menos rarefeita parece ter começado com a divulgação recente do PIB do primeiro trimestre de 2004.
Com grande alarde, comemorou-se o crescimento de 2,7% em relação ao mesmo período do ano passado e o aumento de 1,6%, ajustado sazonalmente, contra o último trimestre de 2003. Muito mais discreto foi o registro de que, em termos correntes, o produto brasileiro neste início de ano caiu 0,24% em relação ao final do ano anterior.
Cabem aqui três observações. Em primeiro lugar, é razoável supor que, diferentemente do que acontece com as expectativas de mercado, a sensação de bem-estar da população guarda uma relação muito mais direta com o nível de atividade corrente do que com estatísticas tratadas por modelos econométricos (de resto, imprecisas). Além de tola, deve ser frustrante a tentativa de confortar uma vítima das tradicionais enchentes do verão paulistano lembrando-lhe de que, na verdade, a chuva é menos intensa quando "ajustada por fatores sazonais". Ora, a boa notícia é que o produto caiu muito pouco em uma época do ano em que ele deveria cair muito -mas caiu.
A segunda constatação é que, também por razões sazonais, o quadro vai melhorar. Mesmo se a economia estivesse estagnada -o que não é o caso-, o PIB tende a crescer mais de 5% entre março e setembro. Ou seja, a percepção de crescimento neste período não será apreciada apenas por iniciados. Mais importante, também a taxa de desemprego tende a ser menos feroz nos próximos meses. Para o governo, feliz sincronia com o calendário político.
A terceira indagação é mais importante e diz respeito à durabilidade desse crescimento. Em que pese o vezo mal-humorado de lembrar que a base de comparação é muito baixa, todo crescimento do emprego e da renda é positivo. Mas a sustentabilidade dessa expansão é particularmente importante para o cenário político, já que o alto custo do ajuste de 2003 induziu grande parte do governo e da sociedade a pensar que temos direito agora a uma permanente melhoria. A dificuldade é identificar com precisão até que ponto vão essas expectativas e de que forma elas podem ser frustradas se o crescimento for menos que espetacular. Desde Campos Salles e Joaquim Murtinho, o Brasil tem que lidar com restrições econômicas externas e "darwinismo social". Muita coisa mudou, mas as condições de financiamento externo continuam impondo restrições. Por muito tempo os juros internacionais ficaram em patamares historicamente baixos. A partir de março passado, no entanto, eles começaram a subir. As taxas dos papéis do Tesouro norte-americano de dez anos, por exemplo, saltaram de 3,7%, em meados de março, para 4,8%, dois meses depois. Elevação de juros é sempre má notícia para os devedores. Pior é constatar que o processo de ajuste ainda não se completou. Não será surpresa se em 2005 esses mesmos papéis estiverem pagando algo entre 5,5% e 6% ao ano, ainda abaixo da média da década de 90, mas o suficiente para provocar novos arrepios. Isso pode limitar o espaço para reduções mais ousadas nos juros domésticos, o que atrapalha a perspectiva de um crescimento no próximo ano maior que os 3,7% esperados em 2004. São evidentes os sinais de que a vulnerabilidade externa é menor hoje do que há cinco anos, mas também é fato que o Brasil continua apresentando uma alta relação dívida/reservas em relação a outros países emergentes -e, na disputa por recursos externos, a posição comparativa pesa geralmente mais que a melhora absoluta. Não só os juros externos devem subir ainda mais como, no front interno, a expectativa de inflação começa a se elevar, seja pela incipiente pressão cambial, seja pela influência dos preços administrados. Mantido o enfoque atual, é improvável que o Banco Central derrube os juros enquanto a inflação esperada estiver crescendo (na última vez em que isso ocorreu, no segundo semestre de 2002, o corte foi seguido por cinco elevações consecutivas). Além dos juros externos e da inflação, também a baixa taxa de investimento pode colocar freio na expansão da produção. O volume de investimentos produtivos no ano passado foi o mais baixo desde 1994. Isso gera gargalos na infra-estrutura e pode colocar um freio na expansão do nível de atividade.
Em suma, o maior desafio não está em garantir o crescimento de 2004. Em grande parte, ele não só está assegurado como deverá aumentar sua velocidade nos próximos meses. Mas ainda não é seguro afirmar que este ano marcará o início de um longo ciclo expansivo. Conciliar a enorme expectativa de forte expansão do emprego com as restrições econômicas externas e internas é o verdadeiro jogo. O resto é apenas estatística.


Luís Eduardo Assis é executivo-chefe do HSBC Investment Bank S.A. e vice-presidente da Anbid (Associação Nacional dos Bancos de Investimento). Foi diretor de Política Monetária do Banco Central e professor do Departamento de Economia da PUC-SP e da FGV-SP.
Hoje, excepcionalmente, a coluna de Luiz Carlos Mendonça de Barros não é publicada.


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