São Paulo, terça-feira, 09 de agosto de 2005

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LUÍS NASSIF

O Anjo Tosco do Cerrado

Vendo a triste figura de Delúbio Soares, vem-me à memória Gregório Fortunato, o Anjo Negro, o guarda-costas, o mais leal amigo que Getúlio Vargas já teve e que o levou à desgraça.
Gregório acompanhou Getúlio até o fim. Em 1945, foi morar com o chefe, ditador deposto, em uma casa de fazenda, sem luz elétrica, no interior do Rio Grande do Sul. Voltou com Vargas eleito presidente. Quando o chefe demonstrou não ter os mesmos reflexos políticos de antes, tomou iniciativas. Era um bruto, sem nenhuma sofisticação. Articulou o atentado da rua Tonelero, contra Carlos Lacerda, depois viu seu mundo ruir, seu chefe se matar e amargou décadas na prisão. Muitas vezes tentei imaginar o que se passava na cabeça daquele brutamonte na cadeia, a mais leal das pessoas, abandonado por todos e sendo apontado como o traidor de seu chefe.
O mesmo ocorre agora com Delúbio, o Anjo Tosco do Cerrado. Cruzei uma vez com ele, almoçando no Amadeus, restaurante de peixes ali na Haddock Lobo. No final da escada, na primeira mesa atrás da coluna, estava Delúbio, terno bem cortado e um havana cujo cheiro, por si só, chamaria a atenção do quarteirão inteiro. Ele não fazia reunião, concedia audiência. Várias pessoas aguardavam na parte térrea do restaurante. Uma a uma subiam, sentavam à sua mesa, conversavam em voz baixa, depois desciam. Era inacreditável que aquilo ocorresse a três quarteirões da avenida Paulista, em um lugar aberto e freqüentado.
Não se compare Delúbio a Valério. Valério é desses lobistas de porão alçados a uma grande posição por falta de discernimento de seus contratantes. Ousou abordar grandes grupos internacionais e nacionais com a mesma desenvoltura com que abordava pequenos bancos brasileiros barras-pesadas.
Delúbio, não, esse é o personagem trágico, o Quasímodo em um mundo de Richelieus tropicais. No começo, com aquele ar de deslumbramento explícito, mas tão explícito que dava dó não perceber o que seria dele no dia seguinte. Depois, o mesmo ar apalermado de quem até agora não entendeu nada. O país o acusando, mais que isso, o partido o acusando, os companheiros o acusando, logo ele, que dedicou sua vida à "causa" -que não eram idéias nem propostas, mas o grupo, os amigos, as lealdades.
Assim como Gregório, o Anjo Negro, Delúbio irá cozinhar no inferno e despertará piedade em muitos poucos. A opinião pública jogará em suas costas os pecados de todo o sistema. Os companheiros atribuirão à sua incompetência e deslumbramento a desgraça política do partido.
É até possível que, com sua lealdade tosca, como o próprio Gregório, ele assuma calado todas as culpas. O Anjo Negro e o Anjo Tosco do Cerrado: imagino-os no inferno da história tentando entender em que erraram. Gregório com ar altivo, Delúbio com ar assustado, ambos com o ar perplexo dos que entraram e saíram da história sem se dar conta, por um minuto sequer, do papel que protagonizaram.

E-mail - Luisnassif@uol.com.br


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