São Paulo, domingo, 10 de junho de 2001

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LUÍS NASSIF

O menino passarinho

Esse riquíssimo rio, que é a música popular brasileira, é enriquecido periodicamente por afluentes relevantes, compositores que têm sua explosão criativa, geram um conjunto inesquecível de obras-primas, marcando profundamente seu tempo. Depois, se recolhem, mas os ecos do que compôs vão atravessando anos, gerações, incorporando-se definitivamente ao eterno da música popular.
Um desses compositores inesquecíveis é Luiz Vieira, da brilhante geração de compositores nordestinos que passaram a dominar a música brasileira nos anos 50. Com a explosão do baião e a redescoberta da música nordestina, houve uma invasão de compositores brilhantes, no rastro de Luiz Gonzaga, o "rei do baião". Zé do Norte, a geração baiana de Gordurinha, Rosil e Jackson do Pandeiro, os sanfoneiros, em que brilhava a enorme estrela de Sivuca.
Apesar da origem nordestina -nasceu em Caruaru, Pernambuco, em 1928-, Vieira mudou-se criança para o Rio e acabou se tornando um compositor eclético, como foi eclética sua vida, antes de se profissionalizar na música. Trabalhou como engraxate, guia de cego e, depois, motorista de caminhão. Segundo a "Enciclopédia da Música Brasileira", em 1943 passou a se apresentar em programas de calouro, com sua voz rouca, um grave inesquecível, além de "crooner" da Leiteria Boll e do Capela.
Começou sua carreira radiofônica em 1946, no programa "Manhãs da Roça", da rádio Mundial, comandado por Zé do Norte, o imenso compositor de "Lua Bonita", falecido no anonimato, em 1978. Depois, mudou-se para o programa "Salve o Baião", da rádio Tamoio, passando a compor a curiosa e musical monarquia do baião, com o "rei" Luiz Gonzaga, a "rainha" Carmélia Alves, o "príncipe" Luiz Vieira e a "princesinha" Claudete Soares. Carmélia Alves era uma mulher belíssima, cantora e tocadora de acordeão, que acabou fazendo muito sucesso nas chanchadas da Atlântida. Claudete faria sucesso na bossa nova. Aliás, o excelente biógrafo Ruy Castro, em seu livro sobre a bossa nova, investe pesadamente contra o baião, sem saber que dois dos ícones do livro -Dolores Duran e Claudete- começaram a carreira musical de chapéu de couro na cabeça, cantando o baião.
O baião não foi apenas uma manifestação de curiosidade nordestina, mas uma escola musical modernizante que representou um corte na música brasileira da época. Por isso mesmo, a visão de que a bossa nova encontrou uma música estagnada e veio para acabar com o "dó-de-peito" da música brasileira não procede. A MPB estava em plena ebulição, com a renovação de Caymmi, os baiões de Gonzaga, a modernização harmônica trazida pelos violonistas da rádio Nacional.
Vieira não se enquadrou em nenhuma dessas escolas. Passou pela rádio Tupi, em 1953 foi para a rádio Nacional, e aí começou sua enxurrada de obras-primas, de baiões e toadas nordestinas a guarânias do Sul, das mais belas que o gênio brasileiro já produziu.
É de 1953 sua primeira obra-prima, "Menino de Braçanã", em parceria com Arnaldo Passos, sucesso na voz de Ivon Curi ("é tarde, eu já vou indo / preciso ir me embora / té manhã"). Depois, "Guarânia da Lua Nova", uma das minhas músicas prediletas. Com João do Vale produziu clássicos da música nordestina, como "Malaquias" (ou "Peba na Pimenta").
Mas foi no início dos anos 60 que explodiria em todo o país. Primeiro por meio de um programa semanal que teve na TV Record e, em seguida, na TV Excelsior. Depois, por meio de seus prelúdios, que o consagrariam definitivamente como um dos gigantes da música popular brasileira. "Paz do Meu Amor" ("você é isso, uma beleza imensa / toda a recompensa de um amor sem fim"), de 1963, e "Prelúdio para Ninar Gente Grande" ("quando estou nos braços teus / sinto o mundo bocejar"), considerado seu maior sucesso.
As composições de Luiz Vieira eram imbatíveis nas nossas serenatas, tanto em Poços de Caldas quanto em São João da Boa Vista. Lá para meados dos anos 60, depois da passagem da bossa nova, a música nordestina retomou algum ímpeto, por meio de Geraldo Vandré. Nos festivais estudantis daquele período, era uma das influências maiores, embora seu ecletismo impedisse que criasse uma escola.
Hoje em dia, mantém um programa em rádios do Rio de Janeiro. Vez por outra o encontro em viagens pelo país. A voz continua impecável, o repertório, absoluto. Nos shows, há uma certa amargura, uma certa queixa pela falta de reconhecimento atual.
Bobagem! Seu lugar na música brasileira ninguém tira. Sua música, que me veio por meio de meu pai, chegou às minhas filhas e chegará a suas filhas e netas, ainda que nenhuma rádio mais a tocasse. Apenas transitando por esse rio dos tempos da tradição, que independe de veículos para se eternizar.


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