São Paulo, domingo, 10 de novembro de 2002

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Fanatismos e pós-modernidade

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

Umberto Eco é autor de um artigo sobre a vida moderna em que examina o comportamento dos fanáticos do chamado esporte bretão, jogo desenvolvido e aperfeiçoado pelo povo da República Federativa do Brasil.
Eco odeia os fanáticos pelo futebol, porque os vê como corifeus do nacionalismo ecumênico, como "criaturas tão convencidas da igualdade entre os homens que são capazes de quebrar a cabeça do fanático da província limítrofe". Convencidos da universalidade do seu particularismo, distribuem porradas aos que estão no mundo exatamente como eles, só que do lado contrário.
Lembrei-me de Jean-François Lyotard e de seu elogio da pós-modernidade: "Não podemos mais recorrer à grande narrativa - não podemos nos apoiar na dialética do espírito nem mesmo na emancipação da humanidade para validar o discurso científico pós-moderno". A verdade é a parte; a fragmentação é o único caminho que pode reconciliar o indivíduo com a sociedade. Isso é o que parece proclamar Lyotard em sua fúria para destruir a herança do Iluminismo. Lyotard argumenta que as concepções teóricas, as interpretações da história, são necessariamente coercitivas e dogmáticas e, pior que isso, as filosofias da história levam inexoravelmente a humanidade ao beco sem saída da opressão e do totalitarismo.
Pois Eco descobre no fanático por futebol o ser emblemático da pós-modernidade, o apóstolo da homogeneidade absoluta do discurso, um ponta-de-lança da igualdade ao rés das chuteiras. "Não tem sequer a noção de diversidade, variedade e incomparabilidade dos mundos possíveis."
Hegel havia imaginado que a igualdade e a diferença não só eram indissociáveis na sociedade moderna como deveriam subsistir, reconciliadas, sob as leis de um Estado ético. Esse Estado permitiria a cada elemento preservar sua diferença em relação aos outros e, ao mesmo tempo, harmonizá-la entre si, manter a integridade do todo.
As transformações das sociedades modernas e o fracasso das tentativas de impor o Estado ético reforçaram, na verdade, a fragmentação e, neste particular, o discurso de pós-modernidade apenas conclui o que os fatos dizem. Os fatos dizem que assistimos ao declínio das utopias, à degradação das propostas coletivas, ao memento mori das grandes filosofias. O mundo parece se aproximar, em sua evolução e na transformação das consciências, de um incompreensível mosaico colorido, formado por todas as torcidas de futebol que têm em comum a paixão pela bola e a dificuldade de aceitar as razões do outro. "Deixem que os outros venham a nós. Assim poderemos bater à vontade", resume Eco em sua reflexão críptica.
O crítico norte-americano Fredric Jamenson, no entanto, suspeita que a passagem do período moderno para o pós-moderno tenha significado a substituição da alienação do sujeito pela fragmentação do sujeito. Sustenta que essa fragmentação é, na verdade, o resultado de uma recusa de se comprometer com o presente, ou, mais precisamente, de pensá-lo historicamente. A recusa de pensar o presente como história é também a incapacidade de reter e de valorizar o passado, a tentativa desesperada de viver a história como o eterno presente.
Jamenson está preocupado com a incapacidade que tem o sujeito moderno de compreender o sentido do que aparece fragmentado. Para ele, a fragmentação do sujeito e de sua vida é a contrapartida da integração cega e cada vez mais abstrata das forças objetivas da sociedade.
Na verdade, a integração das "forças objetivas", ou seja, a transnacionalização dos mercados e da produção, dos estilos de vida e de consumo, opera sem descanso e promove a colonização da vida individual e coletiva. O desenvolvimento das formas de produção -material encapsulado na lógica implacável dos mercados- impõe não só a racionalização da vida privada como também uma maior complexidade da estrutura social.
Para o cidadão comum, tais circunstâncias parecem impedir o controle dos processos econômicos e sociais. As erráticas e aparentemente inexplicáveis convulsões das Bolsas de Valores ou as misteriosas evoluções dos preços e das moedas são capazes de destruir suas condições de vida. Mas o consenso dominante trata de explicar que, se não for assim, sua vida pode piorar ainda mais. A formação desse consenso é, em si mesma, um método eficaz de bloquear o imaginário social, numa comprovação dolorosa de que as criaturas da história humana -da ação coletiva- adquirem dinâmicas próprias e passam a constranger a liberdade de homens e de mulheres.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).


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