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RUBENS RICUPERO
Flores póstumas
João Frank da Costa foi um
dos primeiros a perceber a primazia do conhecimento científico e da pesquisa
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QUERO AS flores em vida, dizia
Nelson Cavaquinho. Depois,
só rezas e nada mais. João
Frank da Costa teve suas flores
muito tempo depois da morte. Ao
menos as que lhe foram destinadas
pela Ordem do Mérito Científico,
conferida a título post mortem por
feliz iniciativa do ministro da Ciência e Tecnologia.
A homenagem oficial convida ao
esforço de revelar aos muitos que a
desconhecem a vida desse homem
de exceção até na origem incomum.
Um dos últimos, se não o último de
espécie em extinção -a dos diplomatas nascidos e criados no exterior-, vinha de uma dessas velhas famílias portuguesas do Pará proprietárias de seringais e sesmarias.
A borracha e o câmbio estável permitiam-lhes viver em Paris por gerações. No seu caso, se não estou
enganado, o pai e o avô já tinham
nascido na Europa.
Herdou casa no aristocrático
bairro parisiense de Passy e passava
férias no seu antigo priorado do século 13, no Périgord. Não era, porém, dos que se acomodam ao caminho de facilidades. Antes de
completar 18 anos na França ocupada, aderiu à Resistência, onde se
contava que se distinguiu por ações
arrojadas contra os nazistas. Finda
a guerra, destacou-se nos estudos
de direito internacional, economia
e literatura. Sua tese pioneira sobre
o regime internacional da Antártida já revelava o pendor científico
que o caracterizaria.
Após o concurso brilhante no
Instituto Rio Branco, escreveu primeiro um longo ensaio, depois um
livro sobre a diplomacia de Joaquim Nabuco, que, desde então, se
tornaram obras de referência. O livro teve, infelizmente, edição tão
desleixada e cheia de erros de impressão que é de leitura penosa. O
Itamaraty completaria a homenagem atual se promovesse uma edição decente, uma vez que a obra é uma raridade. Melhor até se reunisse no novo livro os artigos e escritos esparsos.
João Frank foi praticamente
quem inventou no Brasil o tema da
cooperação internacional para o
desenvolvimento em matéria de
ciência e tecnologia. Criou a divisão
sobre o assunto no Itamaraty, e o
trabalho que realizou teve tamanha
repercussão, dentro e fora do país,
que as Nações Unidas o convidaram
para ser o subsecretário-geral da
ONU para a área.
Nessa condição, organizou a
grande Conferência da ONU sobre
Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento, em Viena, nos anos 70,
tempos de confronto pouco propícios ao entendimento. Desde aquele começo, as nações líderes em pesquisa científica já se haviam
atrelado aos interesses mercantilistas das transnacionais detentoras
da tecnologia farmacêutica e da biotecnologia.
João Frank foi um dos primeiros
a perceber a primazia do conhecimento científico e da pesquisa. Os
raros setores nos quais o Brasil seguiu essa política -a agricultura,
com a Embrapa, a indústria aeronáutica, com a Embraer- são, não
por acaso, os de maior dinamismo e
êxito da economia brasileira. Os
princípios cooperativos de Viena
até hoje se contrapõem ao egoísmo
privatizante da proteção excessiva
das patentes na luta para dar acesso
a todos ao patrimônio científico da
humanidade.
Uma ironia cruel fez com que esse homem, todo ação e energia, fosse aos poucos anulado por uma dessas misteriosas doenças que destroem os músculos. Não se abateu e, até o fim, continuou a inventar, cada vez mais mergulhado nas obras
de "assemblage" que criava com
materiais disparatados reunidos
com humor e irreverência.
Fazia bem, de modo claro e despretensioso, tudo que tocava, inclusive a cozinha.
A essência de João Frank está no delicioso "La cuisine
et la table dans l'oeuvre de Proust",
que escreveu quando convidado a
dirigir a reencenacão do jantar que
a mãe do Narrador oferece a Monsieur de Norpois.
Pequena obra-prima de erudição, intuição crítica e ironia sutilíssima, comenta o texto que a fiel
Francoise deveria ter preparado
sob protesto a extravagante salada
de ananás com trufas, triunfo do
exagero burguês. E completa com
julgamento que poderia servir-lhe
de lema. A cozinheira de gênio,
afirma João Frank, sabe que a boa
cozinha se reconhece "não no rebuscamento e na complicação, mas
na simplicidade -signo de perfeição- e na capacidade de dar valor
ao gosto que possuem as coisas".
RUBENS RICUPERO , 69, diretor da Faculdade de Economia
da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas
sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.
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