São Paulo, quinta-feira, 11 de janeiro de 2007

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PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

O boneco de neve

O governo praticamente parou, presidente em Guarujá, ministros em férias; volto a falar da minha infância

O GOVERNO praticamente parou. O presidente da República está em Guarujá para um merecido (sem ironia) descanso.
O ministro da Fazenda entrou em férias. O presidente do Banco Central viajou para uma reunião de banqueiros centrais na Suíça, onde distribuiu platitudes para benefício dos seus colegas e da imprensa. O secretário do Tesouro pediu demissão.
Alguns dos diretores mais influentes do BC também estariam demissionários. Da equipe econômica, restou-nos em Brasília basicamente o ministro do Planejamento, a distribuir dicas e pistas sobre o Plano de Aceleração do Crescimento, cujo anúncio oficial está previsto para o dia 22.
Convenhamos, leitor, não me resta outra alternativa senão mudar de assunto. Na quinta-feira passada, escrevi um artigo um pouco mais técnico sobre os dilemas da política fiscal, que não teve, confesso, grande repercussão. Posso, então, contar outro episódio de infância? Tenho pensado muito na minha infância ultimamente. Não sei por quê. Outro dia, caminhando pela Melo Alves, passei em frente a uma escolinha e vi a placa: "Temos vagas para crianças de três anos" -tive vontade de me matricular imediatamente.
Dos 9 aos 11 anos, fui aluno da Rockcliffe Park Public School, em Ottawa, no Canadá, a escola que me deixou as lembranças mais vívidas.
O colégio era em si mesmo uma pequena comunidade, que cumpria todo um ciclo anual de atividades. Na primeira grande nevada do ano, realizava-se durante o recreio um concurso de esculturas de neve. As crianças participavam com grande empenho. No meu primeiro inverno canadense, fiquei numa situação deplorável. Brasileiro nato e hereditário, neve nunca fora o meu forte.
Aí um colega me salvou. Preciso fazer um parêntese e descrever rapidamente a figurinha. Era um garoto canadense, alto, dentuço, de óculos de fundo de garrafa. O seu nome era Andrew Burpee. Sempre bem-humorado, vivia repetindo a seguinte e péssima piada: "There is nothing worse than a broken pen, except two broken pen" (Não há nada pior do que uma caneta quebrada, exceto duas canetas quebradas) -e ria sozinho.
Começou o recreio e lá estava eu, desorientado, cercado de neve por todos os lados. O Andrew se aproximou e disse: "Vamos fazer juntos". A minha contribuição foi principalmente empilhar e carregar a neve. O menino canadense fez um boneco que era uma pequena obra-prima.
Voltamos para a classe. Havia caixas de som, instaladas em todas as salas de aula, por meio das quais o diretor da escola, Mr. Redfern, podia se comunicar com os professores e alunos. Horas depois, Mr. Redfern anunciou o resultado da comissão julgadora: "Primeiro lugar: Andrew Burpee e Paul Batista".
Foi uma consagração. Os nossos companheiros de classe nos cumprimentaram com entusiasmo. Comparecemos os dois ao gabinete do diretor para receber uma barra de chocolate cada um. Na volta, mais palmas e cumprimentos. No recreio seguinte, já éramos celebridades totais.
No início, ainda fiquei um pouco constrangido. Mas, com o passar das horas, a consciência do mérito foi se instalando firmemente em mim.
Aceitava os cumprimentos com satisfação e orgulho. A situação era um pouco como a daquele personagem de um conto de Machado de Assis, que se impressionara muito com a frase ouvida de um conhecido: "O Brasil é uma criança que está engatinhando; só começará a andar quando tiver muitas estradas de ferro" -platitude digna de um Henrique Meirelles.
Reencontrando o tal conhecido algum tempo depois, relembra a frase: "Como dizíamos, o Brasil está engatinhando; só andará com estradas de ferro". Mais tarde, já eleito deputado, encontra novamente o conhecido e lê o exórdio de um discurso que pretendia proferir na Câmara: "E aqui repetirei o que, há alguns anos, dizia eu a um amigo: o Brasil é uma criança que engatinha; só começará a andar quando estiver cortado de estradas de ferro".
Bem. Cheguei em casa no fim do dia na condição de escultor consagrado. Corri para contar a história à minha mãe. Ela ouviu tudo e soltou um único comentário: "Aposto que o outro menino fez tudo". O meu pequeno castelo de cartas desabou instantaneamente. Terminou aí a minha carreira de artista.


PAULO NOGUEIRA BATISTA JR., 51, economista e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "O Brasil e a Economia Internacional: Recuperação e Defesa da Autonomia Nacional" (Campus/Elsevier, 2005).
pnbjr@attglobal.net


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