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PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.
O boneco de neve
O governo praticamente parou, presidente em Guarujá, ministros em férias; volto a falar da minha infância
O GOVERNO praticamente parou. O presidente da República está em Guarujá para
um merecido (sem ironia) descanso.
O ministro da Fazenda entrou em
férias. O presidente do Banco Central viajou para uma reunião de banqueiros centrais na Suíça, onde distribuiu platitudes para benefício dos
seus colegas e da imprensa. O secretário do Tesouro pediu demissão.
Alguns dos diretores mais influentes do BC também estariam demissionários. Da equipe econômica,
restou-nos em Brasília basicamente
o ministro do Planejamento, a distribuir dicas e pistas sobre o Plano
de Aceleração do Crescimento, cujo
anúncio oficial está previsto para o
dia 22.
Convenhamos, leitor, não me resta outra alternativa senão mudar de
assunto. Na quinta-feira passada,
escrevi um artigo um pouco mais
técnico sobre os dilemas da política
fiscal, que não teve, confesso, grande
repercussão. Posso, então, contar
outro episódio de infância? Tenho
pensado muito na minha infância
ultimamente. Não sei por quê. Outro dia, caminhando pela Melo Alves, passei em frente a uma escolinha e vi a placa: "Temos vagas para
crianças de três anos" -tive vontade
de me matricular imediatamente.
Dos 9 aos 11 anos, fui aluno da
Rockcliffe Park Public School, em
Ottawa, no Canadá, a escola que me
deixou as lembranças mais vívidas.
O colégio era em si mesmo uma pequena comunidade, que cumpria todo um ciclo anual de atividades. Na
primeira grande nevada do ano, realizava-se durante o recreio um concurso de esculturas de neve. As
crianças participavam com grande
empenho. No meu primeiro inverno
canadense, fiquei numa situação deplorável. Brasileiro nato e hereditário, neve nunca fora o meu forte.
Aí um colega me salvou. Preciso
fazer um parêntese e descrever rapidamente a figurinha. Era um garoto
canadense, alto, dentuço, de óculos
de fundo de garrafa. O seu nome era
Andrew Burpee. Sempre bem-humorado, vivia repetindo a seguinte e
péssima piada: "There is nothing
worse than a broken pen, except two
broken pen" (Não há nada pior do
que uma caneta quebrada, exceto
duas canetas quebradas) -e ria sozinho.
Começou o recreio e lá estava eu,
desorientado, cercado de neve por
todos os lados. O Andrew se aproximou e disse: "Vamos fazer juntos". A
minha contribuição foi principalmente empilhar e carregar a neve. O
menino canadense fez um boneco
que era uma pequena obra-prima.
Voltamos para a classe. Havia caixas de som, instaladas em todas as
salas de aula, por meio das quais o
diretor da escola, Mr. Redfern, podia
se comunicar com os professores e
alunos. Horas depois, Mr. Redfern
anunciou o resultado da comissão
julgadora: "Primeiro lugar: Andrew
Burpee e Paul Batista".
Foi uma consagração. Os nossos
companheiros de classe nos cumprimentaram com entusiasmo.
Comparecemos os dois ao gabinete
do diretor para receber uma barra
de chocolate cada um. Na volta, mais
palmas e cumprimentos. No recreio
seguinte, já éramos celebridades totais.
No início, ainda fiquei um pouco
constrangido. Mas, com o passar das
horas, a consciência do mérito foi se
instalando firmemente em mim.
Aceitava os cumprimentos com satisfação e orgulho.
A situação era um pouco como a
daquele personagem de um conto
de Machado de Assis, que se impressionara muito com a frase ouvida de
um conhecido: "O Brasil é uma
criança que está engatinhando; só
começará a andar quando tiver muitas estradas de ferro" -platitude
digna de um Henrique Meirelles.
Reencontrando o tal conhecido algum tempo depois, relembra a frase:
"Como dizíamos, o Brasil está engatinhando; só andará com estradas
de ferro". Mais tarde, já eleito deputado, encontra novamente o conhecido e lê o exórdio de um discurso que pretendia proferir na
Câmara: "E aqui repetirei o que, há
alguns anos, dizia eu a um amigo: o
Brasil é uma criança que engatinha; só começará a andar quando
estiver cortado de estradas de ferro".
Bem. Cheguei em casa no fim do
dia na condição de escultor consagrado. Corri para contar a história
à minha mãe. Ela ouviu tudo e soltou um único comentário: "Aposto
que o outro menino fez tudo". O
meu pequeno castelo de cartas desabou instantaneamente.
Terminou aí a minha carreira de
artista.
PAULO NOGUEIRA BATISTA JR., 51, economista e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "O Brasil e a Economia Internacional:
Recuperação e Defesa da Autonomia Nacional" (Campus/Elsevier, 2005).
pnbjr@attglobal.net
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