São Paulo, domingo, 11 de abril de 2004

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

As máscaras da vulnerabilidade externa

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

Editado pelo FMI (Fundo Monetário Internacional), o "Global Financial Stability Report" deste mês, apesar do tom geral mais otimista, não esconde as preocupações com os riscos implícitos na atual onda de sobreliquidez que inunda os mercados mundiais. Num ambiente de taxas de juros muito baixas, adverte o relatório, os investidores se inclinam naturalmente para atitudes excessivamente otimistas na ponderação entre a evolução esperada dos preços dos ativos e os riscos envolvidos em sua posse. Em tais circunstâncias, são fortes os incentivos para "alavancar" posições especulativas e avançar na direção das regiões mais perigosas do espectro de risco.
O entusiasmo quase generalizado no início com a liberalização e a desregulamentação dos mercados financeiros começa a se transformar em cautela. Os sintomas dessa mudança devem ser buscados no tom mais prudente das análises nascidas dos arraiais ortodoxos. A dúvida e o questionamento têm sido gerais e irrestritos.
Agora já são muitos os que criticam as interpretações convencionais que costumam atribuir as crises financeiras e cambiais à má gestão monetária e fiscal dos governos. Desde a sucessão de crises dos anos 90, que culminou com a derrocada argentina, os analistas mais responsáveis e menos comprometidos com a ideologia rasa dos interesses procuram sublinhar o papel desempenhado pela "dinâmica de mercado" na precipitação de episódios cambiais e financeiros ruinosos.
A história das crises financeiras é quase sempre a mesma: nas etapas de euforia, a confirmação das expectativas otimistas leva os possuidores de riqueza a buscar apostas mais arriscadas, incorporando ativos de menor qualidade em suas carteiras. Esse é o caso, por exemplo, dos títulos de dívidas, pública e privada, dos emergentes. Esses países costumam oferecer aos investidores internacionais rendimentos muito mais altos do que os apresentados por papéis de mesmo prazo, emitidos por governos mais acreditados.
Essa caminhada dos investidores em direção à zona de riscos mais elevados está sempre amparada pela expansão do crédito bancário, Podem, assim, os apostadores assumir posições que são um múltiplo de seu aporte próprio de capital, na esperança de ulteriores elevações dos preços que valorizarão seu estoque de riqueza.
Nesse quadro, uma súbita alteração das expectativas pode acarretar uma onda de vendas em massa que, aliás, começam sempre pelos ativos mais arriscados. Muitos investidores adquiriram seus ativos a crédito, enquanto outros foram mais ousados na alavancagem. O professor Charles Kindlelberger afirma, com razão, que as crises financeiras só se tornam graves quando as flutuações no valor da riqueza contaminam os bancos. Quando isso acontece, a maquinaria econômica entra em colapso. Na ausência de uma intervenção tempestiva, de natureza pública, não há simplesmente como fazer a engrenagem capitalista voltar ao seu funcionamento normal.
Desde sempre, os mercados financeiros, entregues à própria lógica, são assim mesmo, sujeitos a surtos de euforia e de pessimismo. Isso ocorre a despeito dos esforços dos economistas que insistem em desenhar modelos de mercados eficientes ou construir teoremas sobre a indiferença das estruturas de financiamento. A coisa ainda fica pior quando os surtos de euforia envolvem riscos de "descasamento" de moedas, o que freqüentemente tem levado a crises cambiais, financeiras e bancárias em países imprudentes. Crises sistêmicas são inerentes à dinâmica financeira e uma ameaça permanente ao crescimento das economias. No plano internacional, as inevitáveis ondas de especulação instabilizadora envolvem, ademais, ativos de diversas qualidades denominados em moedas distintas. As crises financeiras transformam-se inevitavelmente em crises cambiais.
Dizem que, para o bom entendedor, meia palavra basta. Mas o relatório do FMI parece não acreditar na sabedoria das parêmias populares. Afirma, de boca cheia e de forma reiterada, que uma eventual (e provável) mudança no ambiente financeiro internacional será inevitavelmente acompanhada de uma elevação dos rendimentos dos papéis do Tesouro americano e de uma ampliação dos "spreads" que incidem sobre os bônus dos países emergentes.
A má notícia: os países com alto endividamento público e estruturas de dívida externa mais voláteis estarão às voltas com vulnerabilidades até agora "mascaradas pelo clima financeiro favorável". A boa nova: diante das boas perspectivas de crescimento global e de preços favoráveis das commodities, os riscos serão reduzidos para os que se prepararam para o choque e cuidaram de manter taxas de câmbio adequadas e reservas elevadas.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).


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