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LUÍS NASSIF
A Globo e a estética da ditadura
O jornalista e professor
Eugênio Bucci, colunista da
Folha, tem levantado tema interessante para debate acerca do
fim do chamado "padrão Globo
de qualidade". Sua tese é a de
que, longe de representar opção
mercadológica, esse padrão teria
sido algo imposto pela ditadura
militar, a quem interessava uma
televisão que refletisse um país
em modernização.
O regime teria garantido o espaço para o "padrão Globo" impedindo a competição. Agora,
com a democracia de massas se
consolidando e com a competição aumentando, não haveria
espaço para um padrão de qualidade.
Não penso dessa forma. No
plano dos negócios, o padrão
transformou a Globo na maior
empresa de mídia do país e conferiu reputação mundial a seus
produtos. O fato de o "padrão
Globo" agradar aos militares
não significa que foi criado para
atender à lógica do regime.
Acho que houve alguma confusão entre a criação do moderno mercado de consumo, que começa no final dos anos 60, como
decorrência inevitável do processo de industrialização do país,
com o fato de esse processo ter se
dado ocasionalmente sob o regime militar. O "padrão Globo"
atendeu à lógica do novo mercado, não à dos militares.
Estudos de modernos industrialistas reforçam essa hipótese.
Falta de competição e mercado
fechado jamais foram motores
de inovação. Pelo contrário, a
tendência das empresas é a de se
acomodar no espaço conquistado.
Se a Globo não tinha competidores, por que haveria de se esmerar em manter o "padrão
Globo"? Para contentar os militares, bastariam programas como "Amaral Netto, o Repórter" e
a cobertura das paradas de 7 de
Setembro.
O "padrão Globo" não significou apenas apuro técnico, mas o
aproveitamento e a organização
do que a cultura popular carioca
tinha de mais criativo -os humoristas da rádio Nacional, da
Atlântida, os músicos, os especialistas em shows, os autores de
radionovelas, matéria-prima
preciosa, mas que estava esparsa
e perdida, depois da decadência
da rádio, e à disposição de qualquer emissora.
Não bastavam os artistas, tinha de haver o plano estratégico
e a gestão. A Globo lançou a noção da grade de programação, as
bases de uma política comercial
profissionalizada, o uso intensivo das pesquisas de opinião, a
análise cotidiana da concorrência, uma verdadeira indústria de
novelas onde se desenvolviam de
padrões de cenários a escolas de
autores e atores, elementos que
só agora começam a ser utilizados eficientemente pelas maiores
empresas brasileiras.
E havia competição pesada
sim. A Globo se impôs sobre uma
TV Tupi bastante poderosa, sobre uma Record que durante
bom período dominou a lista dos
programas mais assistidos, embalada pelos festivais de música.
A conquista dos diversos horários foi um trabalho de planejamento sem paralelo nas empresas brasileiras da época. Montou-se uma estratégia para cada
horário. Revolucionou-se a informação matinal com o programa que lançou Marília Gabriela, investiu-se na programação
infantil, tornou-se nobre o horário da tarde, restrito às donas-de-casa, e dominou-se amplamente o horário noturno, com os
telejornais e as telenovelas -hoje o produto brasileiro mais conhecido no exterior.
Na era Boni, o planejamento
de produção era feito com dois
anos de antecedência. O lançamento de cada programação
anual era acompanhado por toda a opinião pública. A estratégia para tirar de Flávio Cavalcanti a liderança de domingo à
noite constitui-se em "case" clássico da TV brasileira.
A Globo conquistou o horário
ousando um novo modelo de
programa, o "Fantástico", na
época um show de criatividade,
ousadia e qualidade técnica.
O próprio "Jornal Nacional",
apesar do seu oficialismo, foi
uma revolução técnica, com sua
rede de correspondentes e seu
padrão de edição e de reportagem.
Se se tentar entender essa estratégia pela ótica dos interesses
militares, não se vai chegar a nada. Toda essa estratégia está subordinada a uma clara lógica de
mercado de consumo, na qual a
ambição de todo órgão de comunicação é conquistar a fatia mais
larga de público, ser popular
com qualidade.
O "padrão Globo" conseguiu o
extraordinário feito de conquistar todas as classes com níveis de
audiência massacrantes. A Globo derrotava os concorrentes
com facilidade sem apelar, porque podia. Por que não consegue
hoje? Porque acabou o potencial
criativo da era Boni.
Os militares garantiram parte
das verbas publicitárias e impuseram limites ao uso da opinião
no jornalismo. Não mais que isso. Mesmo porque, na prática, o
regime acabou 15 anos antes do
fim da era Boni.
E-mail - lnassif@uol.com.br
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