São Paulo, sábado, 11 de maio de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LUÍS NASSIF

A Globo e a estética da ditadura

O jornalista e professor Eugênio Bucci, colunista da Folha, tem levantado tema interessante para debate acerca do fim do chamado "padrão Globo de qualidade". Sua tese é a de que, longe de representar opção mercadológica, esse padrão teria sido algo imposto pela ditadura militar, a quem interessava uma televisão que refletisse um país em modernização.
O regime teria garantido o espaço para o "padrão Globo" impedindo a competição. Agora, com a democracia de massas se consolidando e com a competição aumentando, não haveria espaço para um padrão de qualidade.
Não penso dessa forma. No plano dos negócios, o padrão transformou a Globo na maior empresa de mídia do país e conferiu reputação mundial a seus produtos. O fato de o "padrão Globo" agradar aos militares não significa que foi criado para atender à lógica do regime.
Acho que houve alguma confusão entre a criação do moderno mercado de consumo, que começa no final dos anos 60, como decorrência inevitável do processo de industrialização do país, com o fato de esse processo ter se dado ocasionalmente sob o regime militar. O "padrão Globo" atendeu à lógica do novo mercado, não à dos militares.
Estudos de modernos industrialistas reforçam essa hipótese. Falta de competição e mercado fechado jamais foram motores de inovação. Pelo contrário, a tendência das empresas é a de se acomodar no espaço conquistado.
Se a Globo não tinha competidores, por que haveria de se esmerar em manter o "padrão Globo"? Para contentar os militares, bastariam programas como "Amaral Netto, o Repórter" e a cobertura das paradas de 7 de Setembro.
O "padrão Globo" não significou apenas apuro técnico, mas o aproveitamento e a organização do que a cultura popular carioca tinha de mais criativo -os humoristas da rádio Nacional, da Atlântida, os músicos, os especialistas em shows, os autores de radionovelas, matéria-prima preciosa, mas que estava esparsa e perdida, depois da decadência da rádio, e à disposição de qualquer emissora.
Não bastavam os artistas, tinha de haver o plano estratégico e a gestão. A Globo lançou a noção da grade de programação, as bases de uma política comercial profissionalizada, o uso intensivo das pesquisas de opinião, a análise cotidiana da concorrência, uma verdadeira indústria de novelas onde se desenvolviam de padrões de cenários a escolas de autores e atores, elementos que só agora começam a ser utilizados eficientemente pelas maiores empresas brasileiras.
E havia competição pesada sim. A Globo se impôs sobre uma TV Tupi bastante poderosa, sobre uma Record que durante bom período dominou a lista dos programas mais assistidos, embalada pelos festivais de música.
A conquista dos diversos horários foi um trabalho de planejamento sem paralelo nas empresas brasileiras da época. Montou-se uma estratégia para cada horário. Revolucionou-se a informação matinal com o programa que lançou Marília Gabriela, investiu-se na programação infantil, tornou-se nobre o horário da tarde, restrito às donas-de-casa, e dominou-se amplamente o horário noturno, com os telejornais e as telenovelas -hoje o produto brasileiro mais conhecido no exterior.
Na era Boni, o planejamento de produção era feito com dois anos de antecedência. O lançamento de cada programação anual era acompanhado por toda a opinião pública. A estratégia para tirar de Flávio Cavalcanti a liderança de domingo à noite constitui-se em "case" clássico da TV brasileira.
A Globo conquistou o horário ousando um novo modelo de programa, o "Fantástico", na época um show de criatividade, ousadia e qualidade técnica.
O próprio "Jornal Nacional", apesar do seu oficialismo, foi uma revolução técnica, com sua rede de correspondentes e seu padrão de edição e de reportagem.
Se se tentar entender essa estratégia pela ótica dos interesses militares, não se vai chegar a nada. Toda essa estratégia está subordinada a uma clara lógica de mercado de consumo, na qual a ambição de todo órgão de comunicação é conquistar a fatia mais larga de público, ser popular com qualidade.
O "padrão Globo" conseguiu o extraordinário feito de conquistar todas as classes com níveis de audiência massacrantes. A Globo derrotava os concorrentes com facilidade sem apelar, porque podia. Por que não consegue hoje? Porque acabou o potencial criativo da era Boni.
Os militares garantiram parte das verbas publicitárias e impuseram limites ao uso da opinião no jornalismo. Não mais que isso. Mesmo porque, na prática, o regime acabou 15 anos antes do fim da era Boni.

E-mail - lnassif@uol.com.br



Texto Anterior: Teles 2: Eletrobrás denuncia golpe de R$ 60 mi
Próximo Texto: Preços: Gasolina, gás e luz puxam alta da inflação de abril
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.