São Paulo, domingo, 11 de agosto de 2002

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Acordo garante travessia até as eleições, diz Senna

GUILHERME BARROS
EDITOR DO PAINEL S.A.

O economista José Júlio Senna, sócio-diretor da MCM Consultores Associados, afirma que o acordo do Brasil com o FMI (Fundo Monetário Internacional) garante tranquilidade ao país até as eleições de outubro. Senna diz que, se não fosse o acordo, o Brasil correria um sério risco de não honrar seus compromissos externos até outubro.
Depois desse período, tudo dependerá do candidato eleito, da política econômica que irá adotar e da equipe a ser escolhida por ele. Foi esse medo do futuro, a seu ver, que fez com que, na sexta-feira, o dólar e o risco Brasil voltassem a disparar. "As incertezas da economia ainda não foram embora", afirma.
Senna acha justificável esse receio do mercado com o próximo governo. O grande problema, diz ele, é que, nos últimos anos, o Brasil registrou índices de crescimento muito baixos e a massa salarial também aumentou muito pouco. Isso pode levar o novo governante a tomar medidas heterodoxas na pressa de fazer o país voltar a crescer. "Seria absolutamente desastroso para o Brasil", diz Senna.
A seguir, os principais trechos da entrevista de Senna.

Folha - Por que o dólar voltou a subir na sexta-feira?
José Júlio Senna
- O problema é que as incertezas da economia ainda não foram embora. Se ainda há incertezas em relação ao futuro, não há como o mercado se acalmar agora.

Folha - Quais seriam essas incertezas?
Senna
- A grande incerteza são as linhas gerais da política econômica a ser adotada pelo próximo governo. O acordo com o FMI não resolveu isso. O acordo com o Fundo possibilita ao país chegar às eleições com menos turbulências. Agora, dependerá dos candidatos aproveitar ou não essa oportunidade dada pelo FMI. Ninguém sabe a resposta. O Brasil estava correndo um risco muito grande de, ainda até outubro, enfrentar uma situação de escassez de divisas, o que poderia dificultar os pagamentos previstos para este ano. Agora, com o acordo, pelas nossas contas, até as eleições, em outubro, se as minhas hipóteses estiverem corretas, o Brasil não enfrentará dificuldades para o cumprimento de suas obrigações externas. O pacote do FMI garante ao país um caminho relativamente tranquilo de hoje até as eleições, certamente muito mais tranquilo do que seria se não tivesse havido o acordo. Resta saber, no entanto, quem vai ganhar as eleições, qual será a equipe econômica, sua política e qual será a disposição do presidente eleito em trabalhar com o FMI.

Folha - O acordo com o FMI pode não ser suficiente para dar tranquilidade ao mercado?
Senna
- O acordo tem dois aspectos bastante importantes, frequentemente mal compreendidos pela população e pelos participantes do mercado. Em primeiro lugar, diz respeito ao montante dos recursos. Sem dúvida, o volume de US$ 30 bilhões é expressivo -afinal, corresponde a dez vezes o valor da cota do país, uma proporção bem pouco usual dentro da tradição do FMI. Por ser tão significativo, esse volume revela o alto grau de confiança que o FMI deposita no país. Percebendo o elevado grau de comprometimento de ambas as partes, os credores internacionais passam a ver o Brasil com melhores olhos. Afinal, há todo um programa sendo cumprido, supostamente com linhas adequadas de conduta macroeconômica, capazes de produzir resultados positivos no futuro. Sabe-se também que o Fundo acompanha de perto toda a execução dos programas e mantém seus desembolsos condicionados ao cumprimento dos compromissos assumidos. O que talvez não tenha ficado claro é que os US$ 30 bilhões não servem para cobrir, diretamente, eventuais hiatos [buracos" do balanço de pagamentos. Esses recursos servem para gerar confiança e para induzir o setor privado a emprestar e a investir no Brasil. Se não tivesse havido a redução do piso das reservas internacionais líquidas, de US$ 15 bilhões para US$ 5 bilhões, que representou US$ 10 bilhões adicionais disponíveis para intervenção no mercado cambial, o acordo teria sido de utilidade prática bastante reduzida.

Folha - Esse piso será suficiente para as necessidades de pagamento do país?
Senna
- Exercícios de previsão de fluxos de balanço de pagamentos são sempre precários, especialmente quando está em vigor o regime flexível de câmbio, mas nós, na MCM, fizemos algumas projeções, usando hipóteses muito semelhantes às adotadas pelo Banco Central. O primeiro exercício levou em conta apenas o cálculo do espaço que prevalecia antes do acordo com o FMI para a intervenção do Banco Central. Com o piso anterior, de US$ 15 bilhões, a autoridade monetária dispunha de pouco menos de US$ 6 bilhões para intervir no mercado. Ocorre, porém, que o fluxo projetado das operações do setor privado -que envolve o déficit em transações correntes, os investimentos diretos estrangeiros, as saídas de capital ao amparo da chamada CC-5- entre agosto e outubro, chegava a US$ 14 bilhões. O hiato projetado, portanto, ressalvada, mais uma vez, a precariedade dos cálculos, era de cerca de US$ 8 bilhões. O novo espaço criado para intervenções não poderia, portanto, ser muito diferente dos US$ 10 bilhões oficialmente anunciados.

Folha - Até outubro, então, a situação estará resolvida?
Senna
- Creio que sim. Na verdade, esse é o grande benefício prático, de curto prazo, de todo o programa. E talvez a grande conquista da equipe econômica. Fica assegurado, salvo algum erro eventualmente cometido na montagem das hipóteses de trabalho, que as eleições se realizarão num clima bem mais favorável do que seria sem o acordo.

Folha - Isso se traduz em estabilidade da taxa do câmbio e em queda do risco Brasil?
Senna
- É muito difícil prever o comportamento dessas variáveis, especialmente a curto prazo. Pode-se dizer, porém, que, tendo alterado sua política de venda de moeda estrangeira, ou seja, tendo anunciado o fim da chamada "ração diária", o BC ficou mais livre para promover vendas relativamente mais pesadas nos momentos de maior pressão. Com isso, a volatilidade da taxa de câmbio -e talvez do prêmio de risco- tende a diminuir. Quanto ao nível dessas variáveis, o prognóstico é mais difícil. Note-se que a grande fonte de incerteza, que é a política econômica do próximo governo, permanece intocada. Não há acordo com o FMI que resolva essa questão. Os candidatos à Presidência terão, no entanto, a possibilidade de começar, em seus primeiros meses no poder, com o amparo de um acordo com o FMI sem que isso implique nada de terrível. É como se o Fundo dissesse assim: confio em qualquer governo, desde que se cumpram os compromissos fiscais e as demais metas do acordo firmado. O candidato vencedor poderá escolher se quer dar continuidade à política vigente, cumprindo as metas fixadas, especialmente as do primeiro trimestre de 2003, ou se prefere enfrentar as turbulências do mercado sem a proteção oferecida. Claro que a oferta poderá ser recusada. E os participantes do mercado sabem disso.

Folha - Foi esse medo que trouxe o pânico de volta na sexta-feira?
Senna
- É claro que as pesquisas eleitorais e os inevitáveis boatos em torno delas [na sexta-feira correu o boato de renúncia do candidato José Serra" têm sempre a sua influência. Mas parece inegável que esse temor em relação ao futuro atua como uma espécie de freio a qualquer movimento excessivamente otimista.

Folha - O que poderia fazer com que o novo presidente recusasse o acordo com o Fundo?
Senna
- Seria a impaciência do novo governante. Nos últimos anos, a despeito de grandes avanços em vários campos, o Brasil cresceu relativamente pouco, uma média de 2,4% ao ano no governo FHC. De certa forma, isso até explica em parte a vitória no combate à inflação. Não se combate esse processo sem custo. De qualquer modo, o crescimento econômico foi modesto, e a massa salarial não cresceu de maneira sistemática. As pessoas, em geral, têm pressa, pressa de corrigir essa situação. E isso se reflete no meio político. Preocupado em encontrar uma solução mais rápida para a recuperação do crescimento, o próximo governante pode querer queimar etapas e não se dispor a seguir uma política gradualista, o que seria mais sensato agora. O exemplo típico é a taxa de juros. Quanto tempo o novo governo estará disposto a esperar para poder reduzir expressivamente os juros reais da economia? Tudo depende do risco Brasil.

Folha - O que essa pressa poderia provocar?
Senna
- Uma política heterodoxa, capaz de assustar os investidores internacionais. Sem dispor de crédito externo, o país acabaria forçado a restringir os movimentos de capitais de alguma forma. Seria absolutamente desastroso para o Brasil. Esse é o maior risco. Em suma, as incertezas ainda não se dissiparam. Para que o quadro se defina, não há substituto para o resultado final das eleições e para os anúncios acerca da equipe e da política econômica do novo governo.

Folha - O acordo com o FMI pode obrigar o Brasil a ter de aumentar os juros?
Senna
- Não há nenhum indício no acordo que obrigue o país a aumentar os juros. Claro que, se houvesse essa obrigação, não seria anunciada, mas não é isso que se conclui ao analisar o acordo. Se houvesse aumento na meta do superávit primário, aí sim poderia se pensar nessa hipótese de aumento de juros, mas não houve isso. Juros maiores significariam aumento da dívida e, para compensar esse aumento, o Fundo poderia exigir aumento na meta do superávit primário. Um superávit primário maior compensaria o efeito ruim do aumento dos juros sobre a dívida. Não há nenhum sinal concreto de que o Fundo esteja recomendando um aperto maior na política monetária. Como as metas de superávit primário permaneceram inalteradas, os indícios são muito fortes de que não deverá haver aumento dos juros.


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