São Paulo, domingo, 12 de março de 2006

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ENTREVISTA

Previsor do estouro da "bolha da internet" afirma que EUA, Europa e Japão perdem espaço para China e Índia

País segue vulnerável na nova ordem mundial

Nir Elias - 24.fev.06/Reuters
Chineses visitam moinho de energia eólica; país avança com combinação entre salário baixo e investimento estrangeiro, diz King


FERNANDO CANZIAN
DA REPORTAGEM LOCAL

Homônimo do famoso escritor de histórias de terror, o economista britânico Stephen King é considerado o primeiro a ter previsto com muita antecedência os horrores saídos do estouro da "bolha da internet", em 2000.
Chefe do Departamento de Pesquisas Globais do banco HSBC e colunista do jornal britânico "The Independent", King afirma que os "velhos tempos" em que EUA, Europa e Japão dominavam a economia mundial terminaram. Países como China e Índia, diz, devem ocupar cada vez mais espaço, e mais rapidamente.
Nessa nova configuração, o Brasil continua dependente do resto do mundo e ainda vulnerável aos reflexos do que pode acontecer fora de suas fronteiras. O atual processo de alta de juros nas economias centrais, diz King, poderá ter efeitos sobre a demanda de commodities e afetar o Brasil.
Nas contas de King, os países-membros do G7 representam hoje 62% da atividade econômica mundial, contra 70% há 15 anos. "O espaço vai sendo ocupado rapidamente por outros", afirma.
Leia a seguir entrevista telefônica concedida por King à Folha de seu escritório em Londres:

Folha - O sr. considera que a paisagem econômica mundial está mudando rapidamente. Onde estão os novos motores do mundo e quais as razões dessa mudança?
Stephen King -
China e Índia são os mais importantes, mas creio que o Brasil também faça parte dessa história. Muitas coisas mudaram nos últimos anos. Entre as mais importantes é que China e Índia tiveram mudanças políticas profundas. A China voltou a ter uma interação e conexão muito maior com o mundo. O sucesso do país nos últimos anos resulta de uma forte combinação entre baixos salários com enormes ondas de investimentos estrangeiros. Algo similar também aconteceu à Índia.
A segunda grande mudança veio por meio da tecnologia, com uma queda abrupta nas tarifas de telecomunicação. O século 21 nessa área é equivalente à revolução das ferrovias no Reino Unido no século 19. A diferença é que as estradas de ferro ligavam cidades dentro dos países. A revolução nas telecomunicações liga cidades e negócios entre países.
O mais importante é que muito mais empresas e pessoas na economia global têm hoje acesso a capitais de boa qualidade. No passado, o capital estava restrito a países da Europa, EUA e Japão. Quando ficou possível transportar o capital rapidamente para países onde o custo do trabalho é relativamente menor, eles passaram a contar com um potencial de crescimento bem mais acelerado. Isso ocorreu especialmente na China, na Índia e, em menor proporção, na América Latina.

Folha - O que explica a concentração de taxas de investimento e crescimento na Ásia?
King -
Creio que haja razões geográficas específicas para isso. Uma das razões do crescimento acelerado da China é que o país está bem ali ao lado do Japão. Durante os anos 90, quando as taxas de investimento e de consumo no Japão eram muito baixas, as companhias japonesas simplesmente transportaram seu capital do Japão para a China, especialmente pelo fato de o custo de mão-de-obra na China ser muito baixo. Há de fato uma razão geográfica.
No caso da Índia, existe um componente migratório muito forte, com milhares de indianos com altos níveis de educação e especialização em áreas de tecnologia voltando ao país depois de adquirirem larga experiência em locais como o Vale do Silício.

Folha - Nesse cenário, como é que fica o Brasil, hoje crescendo bem abaixo da média mundial?
King -
O ponto crítico é ter certeza de que o país se tornará estável do ponto de vista macroeconômico. O Brasil tem feito um trabalho muito bom nos últimos anos, especialmente depois da crise de 1999. Uma das dificuldades que o Brasil e a América Latina têm em geral é a de ainda carregarem um grande nervosismo dos investidores em relação ao país. O passado não é bom e isso é ainda difícil de lidar, pois, uma vez que a reputação é estabelecida, de forma justa ou não, fica muito difícil reverter o quadro e atrair capitais.

Folha - O sr. acha que ainda há uma suspeita de que o Brasil possa dar um "calote", depois de todos esses anos?
King -
As coisas estão indo por um bom caminho, mas um grande teste será ver como o país vai se comportar no caso de choques externos vindo de outras partes do mundo. Se voltarmos às crises da Rússia e da Ásia no final dos anos 90, podemos nos lembrar de como o Brasil foi afetado por elas. A questão hoje é saber se há evidências suficientes para dizer que o Brasil está mais imune a esse tipo de turbulência.
A boa notícia é que a preocupação com a inflação tem sido bem menor na comparação com o passado recente, que o perfil de endividamento do país esteja se tornando mais sólido, com vários pagamentos antecipados, e que o Brasil venha se beneficiando dos ganhos nos preços das commodities internacionais.
Mas o teste pode vir com um aperto maior da política monetária dos EUA (juros maiores) e uma desaceleração da economia americana. Nessas circunstâncias, os preços das commodities vão cair e será preciso ver como o Brasil afinal vai se comportar.

Folha - Em outras palavras, o sr. diz que continuamos vulneráveis.
King -
Isso é verdade para o Brasil e para vários outros mercados emergentes. A globalização trouxe ao mundo seus prós e contras. Houve um aumento da integração e interdependência entre países que têm mão-de-obra barata com outros que têm capital para investimentos. Mas isso também pode levar a um aumento das incertezas em momentos de crise. Há um movimento natural dos investidores nessas horas de voltar para casa. Isso deixa os mercados emergentes vulneráveis, pois são dependentes desses capitais.
Mas a boa notícia aqui é que o Brasil e outros emergentes estão cada vez menos dependentes da entrada líquida de capitais.

Folha - Muitos países emergentes têm hoje superávits em conta corrente, enquanto as economias centrais carregam déficits. Quais são as implicações disso?
King -
É um assunto complicado, pois muitas pessoas têm visões diferentes sobre esse mesmo problema. Uma das razões é que os países asiáticos estão poupando muito para evitar a repetição de uma crise como a que os envolveu no final do anos 90.
A outra é que, em um mundo que está crescendo rápido, a maioria dos países produtores de commodities está concentrada nos mercados emergentes. Quando esses preços sobem, tendem a beneficiar os países e os preços das commodities que exportam. Ao mesmo tempo, há uma deterioração nas contas de países como os EUA e europeus, que dependem da importação de petróleo e de outras commodities.

Folha - Em 1999, o sr. previu o estouro da "bolha da internet" quando ainda havia muito otimismo. O sr. vê algum estouro à frente, já que tudo parece muito bem?
King -
Os mercados já começam a ficar um pouco mais nervosos por causa de um aperto mais agressivo nas políticas monetárias do Fed (banco central dos EUA) e dos bancos centrais europeu e japonês. Mas há outras coisas com as quais temos de ficar preocupados, como os preços no mercado imobiliário americano, que estão bastante inflacionados sob qualquer medida que se possa utilizar. Se o consumo dos americanos também continuar dependente como hoje do valor que têm garantido nesses bens (imobiliários) e em ações, poderá haver uma queda relativamente rápida desse mesmo consumo com uma continuidade do aperto monetário em curso nos próximos meses. Isso não seria uma boa notícia para países emergentes que dependem da exportação de commodities. Enfim, há muitos riscos lá fora.


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