São Paulo, sexta-feira, 12 de maio de 2006

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TENSÃO ENTRE VIZINHOS

Evo Morales expõe seu ideário em Viena, do apoio a Fidel e Chávez à defesa do cultivo da coca

O vingador de "500 anos de espoliação"

Gerard Cerles/France Presse
Evo Morales discursa em Viena, em reunião de chefes de Estado e governo


DO ENVIADO ESPECIAL A VIENA

A entrevista de Evo Morales ontem em Viena permite compor o perfil do governante boliviano conforme suas próprias palavras, em alguns dos principais temas que emergiram, ao menos no Brasil, após a nacionalização do gás.
Mas é um perfil que está assentado menos em questões conjunturais e mais no resgate do que o boliviano considera "500 anos de espoliação" do seu país tanto por estrangeiros como pela elite local.
Morales contou a propósito que, antes de ser presidente, viajou a Madri a convite de uma comunidade local. No aeroporto, a polícia espanhola ameaçou deportá-lo se não exibisse a posse de US$ 500 (ou mais). Sua resposta: "Somos saqueados há 500 anos, logo não me sobraram US$ 500" (mesmo assim acabou sendo autorizado a entrar).
Esse é o fio condutor da história de Evo Morales, que trata assim dos demais temas:
 

DROGAS - Há um conflito latente entre os EUA e o novo governo boliviano, porque Morales se opõe às políticas até agora adotadas, com incentivo americano, para a erradicação do cultivo de folha de coca, matéria-prima para produção de cocaína, principalmente na região de Chapare.
O presidente boliviano defende a "produção racionalizada sob controle do movimento camponês". Morales afirma que, já no governo anterior, houve avanços sem ser necessário recorrer à repressão, com as conseqüentes mortes.
"Produção racionalizada" quer dizer desenvolver o cultivo da folha com "fins benéficos para a humanidade" (medicinais, por exemplo).
Ironiza: "Produzir folha de coca para a Coca-Cola é legal, mas não para outros consumos".
Usa duas frases de efeito: primeiro, rejeita o "coca zero", slogan usado desde o governo do general Hugo Bánzer para dizer que seria erradicado o tradicional cultivo do país. "Não haverá coca zero, mas também não haverá livre cultivo", afirma Evo.
E emenda com o seu próprio slogan: "Cocaína zero, tráfico de drogas zero".
Quer dizer o seguinte: os países consumidores deveriam ajudar a controlar os produtos químicos usados para transformar a folha (em si inócua ou até benéfica potencialmente) em cocaína, esta, sim, o problema.
Morales defende também a repressão ao que considera verdadeiros narcotraficantes, que não seriam "aqueles que estão nas prisões bolivianas", mas os que "giram seus dólares pelos bancos, de terno e gravata". De acordo com Morales, "os governos controlam os bancos e estão perfeitamente informados desses movimentos suspeitos".

POBREZA - Segundo os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatísticas, 67,3% dos 9,2 milhões de bolivianos são pobres, a mais alta porcentagem entre os países da América do Sul.
Para Morales, a "única forma" de enfrentar o problema da miséria é "recuperar os recursos naturais". Mais do que isso, é necessário industrializá-los, em vez de vendê-los em estado natural, característica, até agora, da economia boliviana.

OS AMIGOS - Morales citou apenas Japão, Cuba, Venezuela e "alguns países europeus, como a Dinamarca", entre os que "ajudam incondicionalmente" a Bolívia.
Não mencionou o Brasil, apesar do apoio de Lula a ele em plena campanha eleitoral.
Mas citou ironicamente a Espanha do primeiro-ministro socialista José Luis Rodríguez Zapatero. Disse que, antes das eleições bolivianas, Zapatero lhe disse que, se ganhasse, duplicaria a ajuda à Bolívia. "Ganhei e não vi a duplicação", reclama. Zapatero prometeu, nas mesmas circunstâncias, o perdão da dívida boliviana. "Não veio."

CUBA - O repórter da Radio Martí, emissora de propaganda contra Fidel Castro financiada pelos Estados Unidos, apontava para o "perigo" da relação próxima entre Evo Morales e Cuba.
O presidente boliviano derreteu-se em elogios a Fidel e a Cuba, "um país com semelhante bloqueio econômico e que ensina a governar com soberania e dignidade para seu povo".
Citou o exemplo da chamada "Operação Milagres", em que médicos cubanos fazem, de graça, operações de catarata e de outros males dos olhos, quando, nas clínicas privadas, o custo da operação é de entre US$ 500 a US$ 700.
Já foram feitas 7.000 cirurgias de catarata em dois meses da operação na Bolívia.

COMUNIDADE ANDINA - O presidente venezuelano, Hugo Chávez, praticamente implodiu a CAN (Comunidade Andina de Nações), ao se retirar dela em protesto contra as negociações comerciais de países andinos, como Peru e Colômbia, com os EUA.
Morales diz que mandou carta a Chávez, pedindo para que não concretizasse a retirada, mas mandou outras cartas ao colombiano Álvaro Uribe e ao peruano Alejandro Toledo solicitando a suspensão das negociações com Washington.
O coração de Morales claramente se inclina pela posição de Chávez. "Os princípios básicos da CAN eram fortalecer as economias nacionais e o comércio interno [nos países-membros]. Ao negociar com os EUA, passam a fortalecer a economia neoliberal e as transnacionais", diz o presidente boliviano. (CLÓVIS ROSSI)


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