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OPINIÃO ECONÔMICA
Uma esperança infinita
RUBENS RICUPERO
Nunca, antes ou depois, teve um acontecimento impacto tão profundo no espírito europeu como a Revolução de 1789.
Veja-se esse depoimento do norueguês Steffens: "Eu tinha 16
anos; meu pai, fora de si, chega
em casa, chama os filhos: "Vocês
são dignos de inveja, dias felizes e
brilhantes os esperam!... Todas as
barreiras do nascimento e da pobreza vão tombar...". Vencido pela emoção, interrompeu-se e pôs-se a soluçar. Contou-nos depois
como se havia tomado a Bastilha
e libertado as vítimas do despotismo. Não era somente na França
que começava uma revolução,
mas em toda a Europa. Ela deitava raízes em milhões de almas.
Esses primeiros momentos de entusiasmo, a que se seguiria tão
terrível ruína, tinham em si alguma coisa de puro e santo de que
jamais se esquecerá. Uma esperança infinita invadiu-me o coração...".
Transcrevi longamente esse texto porque não conheço outro que
tenha captado com tamanha força evocativa o efeito libertador e
exaltante das grandes rupturas.
Quem não recorda os instantes de
pura emoção da campanha pela
diretas, da volta da liberdade e da
eleição de Tancredo, a multidão
cantando o Hino Nacional na
rampa do Congresso e tentando
abrigar-se debaixo de gigantesca
bandeira quando sobre ela desabava um desses repentinos temporais de Brasília? Ou a explosão
de alegria que saudou a vitória de
Alfonsín, a que assisti em distante
noite de domingo em Buenos Aires? Ou a Revolução dos Cravos, o
fim do apartheid e tantos outros
momentos de júbilo?
E, no entanto, na manhã seguinte ao dia da festa, é preciso
marcar o ponto no trabalho. O
choque eletrizador de energia, a
embriaguez da liberação de adrenalina desembocam inelutavelmente na cinza das horas de monotonia e de rotina. Pior é quando parecem dar lugar ao retrocesso. Foi o que aconteceu com a
"Primavera dos Povos" das revoluções de 1848: antes que o ano seguinte acabasse, as conquistas populares tinham sido revertidas
em quase toda a Europa. Logo depois, na França, o poder derrubado pelos que derramaram o sangue nas barricadas era de novo
escamoteado pela repressão burguesa de Napoleão, o "Pequeno".
Não obstante essas quedas e decepções, a regressão não durou, e
aos poucos todo o programa do liberalismo político acabou por
realizar-se. O mundo nunca mais
voltou a ser o mesmo.
A partir da queda da Bastilha,
as revoluções de libertação das
Américas, as de 1830 e 1848, a de
1917 e a reação fascista, as guerras
mundiais, a descolonização foram como grandes vagas de fundo que de tempos em tempos
emergem e varrem a face da Terra para ser seguidas por fases de
acalmia, de retrocesso ou evolução gradual. A alternância de
"status quo" e ruptura, de exaltação e desapontamento parece tão
inevitável, quase cíclica, como a
meteorologia binária do El Niño,
que incessantemente aquece e
resfria as massas aquáticas e a atmosfera.
Estaremos acaso diante de vaga
desse tipo com o alastramento e a
ascensão inexoráveis do movimento que se batizou de "antiglobalização", à falta de melhor nome? Ele tem sido comparado ao
de maio de 1968 por não visar à
conquista do poder a fim de realizar um programa qualquer, mas
por dar às vezes a impressão de
contestar todo poder, todo programa fixo. Daí a forte carga utópica, quase anárquica, como no
tempo em que se ia buscar no surrealismo a palavra de ordem: "Sejam realistas: exijam o impossível". Ou quando se afirmava que
não se tratava de mudar "de" vida (individual), mas mudar "a"
vida (coletiva). Ansiava-se por
reorganizar o poder público e a
economia a fim de poder viver vida com menos competição e estresse, menos obcecada com o êxito pessoal, a riqueza. Terá tudo
terminado em fracasso, como se
diz? É subestimar a revolução sexual, a emancipação da mulher,
a afirmação dos homossexuais, a
ruptura estilística trazida pela
música "rock", a maneira diferente de ser jovem.
Embora haja pontos de contato,
penso que o fenômeno atual é diverso. As analogias ficam por conta da hostilidade a um capitalismo espoliativo, à recusa do "homem unidimensional" a que se
referia Marcuse, à exigência de
valores superiores aos da competição econômica. Da mesma forma que em 1968, a tendência hoje
não é dominada ou manipulada
por partidos ou ideologias. Mesmo os que ontem eram esquerda
agora se encontram do lado dos
defensores do "status quo". Em
lugar das lideranças estudantis
improvisadas de Nanterre ou da
Sorbonne, temos redes mais ou
menos articuladas de entidades
fora dos governos e partidos, ligadas flexivelmente por aspirações
sociais e ambientais de cunho solidário, de compromisso moral
com os perdedores de um jogo viciado pela desigualdade, coalizões e alianças de aspirações tão
várias e em fermentação como a
própria vida.
Nada, porém, tem realidade
mais palpável do que os problemas que fizeram 200 mil pessoas
descer às ruas de Gênova: a desigualdade que se agrava no seio
das sociedades mais globalizadas
e entre elas e as demais, a insegurança e a precariedade dos empregos, a desocupação de massa,
a pobreza abjeta, a destruição da
atmosfera, dos oceanos, das florestas. Diante de questões de carne palpitante como essas, de nada
serve repetir banalidades sobre o
livre comércio ou recorrer à repressão e à intimidação policial.
O que as pessoas desejam é sentir-se mais seguras e protegidas, é ter
razões confiáveis para esperar
dias melhores. Para isso, temos de
voltar ao melhor do espírito de
1789, sem os desvios subsequentes:
a capacidade de acender nos corações esperança que não precisa
ser infinita, mas que seja, quando
menos, chama e ardor.
Rubens Ricupero, 64, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail -
rubensricupero@hotmail.com
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