São Paulo, domingo, 12 de setembro de 2004

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CAPITALISMO VERMELHO

Para estudioso norte-americano, má qualidade de empréstimos deve levar bancos ao colapso

China terá crise financeira, diz professor

Andrew Wong - 22.jun.04/Folha Imagem
Linha de montagem de carros em Pequim; professor da Universidade de Pequim adverte sobre riscos de colapso bancário iminente


CLÁUDIA TREVISAN
DE PEQUIM

Apesar do crescimento de 9% ao ano no último quarto de século, a China não está livre de turbulências econômicas e "definitivamente" terá uma crise financeira, diz o economista norte-americano Michael Pettis, 46, professor de finanças internacionais da Universidade de Pequim.
Na China há três anos, Pettis aponta o sistema bancário como a principal fonte de instabilidade no país. Estatais e dominados por critérios políticos, os bancos chineses acumularam na última década uma montanha de créditos de má qualidade, que dificilmente serão recuperados.
No fim, a conta será paga pelo governo, o que eleva a dívida da China a níveis estratosféricos.
"Não há nenhum caso na história de uma economia emergente em rápido crescimento e processo de integração ao mundo que não tenha tido uma crise financeira", diz Pettis, que foi diretor do banco de investimentos Bear Stearns e professor da Escola de Negócios da Universidade de Columbia.
A seguir, trechos da entrevista:

Folha - Qual é a situação do sistema financeiro na China?
Michael Pettis -
Há dois tipos de problemas. O primeiro é que ele não atua da maneira que um sistema financeiro deveria atuar, canalizando dinheiro dos poupadores para os usuários mais eficientes do capital.
O sistema financeiro na China é constituído quase exclusivamente pelos bancos. Há mercados de ações e de bônus, mas eles são tão pequenos que não têm impacto. Quem consegue empréstimos na China? Não são as melhores companhias, mas as que têm um tipo de influência política que lhes dá acesso a financiamentos. São grandes companhias que têm vínculos com os dirigentes das províncias e dos municípios e, infelizmente, elas costumam ser as piores. Seu objetivo não é criar riqueza e prosperidade, mas empregar pessoas, normalmente por critérios estabelecidos pelos dirigentes provinciais e municipais.

Folha - O segundo problema?
Pettis -
Esses bancos têm uma longa história de concessão de empréstimos com base em razões políticas em oposição a razões econômicas e, em conseqüência, eles têm um volume considerável de empréstimos de má qualidade. Em que valor? Realmente não sabemos. O número oficial aponta para algo em torno de 15% a 20%. Para se ter uma idéia, o Japão, que é considerado um caso de sistema bancário desastroso, tinha créditos de má qualidade próximos de 10%, 12%, 15% do total.
Na China, o número real é bem superior à estimativa oficial. Provavelmente, algo entre 30% e 50% do total de empréstimos seriam de má qualidade.

Folha - Em números absolutos, de quanto estamos falando?
Pettis -
A economia chinesa tem um tamanho entre US$ 1,3 trilhão a US$ 1,5 trilhão e o total de empréstimos em relação ao PIB está em torno de 120% a 130%, o que nós dá um valor aproximado de US$ 1,56 trilhão a US$ 1,95 trilhão em financiamentos. Se considerarmos que de um terço a metade é de má qualidade, chegamos a um número que varia de US$ 470 bilhões a US$ 970 bilhões.
A maior parte dos empréstimos é feita por bancos estatais. Os depositantes chineses colocaram seu dinheiro nos bancos, que os transformaram em empréstimos. Em teoria, quando eles recebem os empréstimos, esse dinheiro estará disponível para pagar os depositantes. Mas na realidade, eles não vão recuperar o dinheiro.
Quanto de dinheiro eles não vão recuperar? Nós não sabemos, mas vai faltar muito dinheiro, porque vários tomadores estão quebrados. Esse valor pode ser equivalente a 40% do PIB ou mais. Isso significa que alguém vai perder dinheiro em um valor próximo a 40% do PIB. Serão os depositantes? Quase certamente não. Provavelmente teríamos uma revolução social. No fim, a responsabilidade é do governo.
Quando pensamos na dívida do governo, temos de considerar o débito oficial, que é um pouco superior a 20% do PIB e é muito bem estruturado, e incluir o débito "escondido" em âmbito municipal e provincial. Um economista chinês estima que este valor seja de 10% do PIB. Não sei se esse número é correto, mas isso traria o débito formal da China para algo em torno de 30% do PIB, que é um número muito bom.
O problema aparece quando se soma o débito do sistema bancário. Quando somamos a isso, o total das obrigações do governo sobe para 60%, 80% ou 100% do PIB. Não temos segurança sobre o número, mas sabemos que é bem maior que a dívida formal.

Folha - Apesar desses problemas, a economia chinesa vem crescendo há 26 anos a uma média próxima de 9% ao ano.
Pettis -
Há modelos diferentes de rápido crescimento em uma economia emergente. O chamado modelo latino-americano tem períodos de rápido crescimento seguidos de crises de dívida, que revertem muito do crescimento. Outro é o modelo norte-americano do século 19, que tem um amplo período de rápido crescimento, mas ele não é suave. Os Estados Unidos no século 19 eram um lugar extremamente instável para investimentos. O país tinha graves crise a cada 10 a 15 anos, algumas delas brutais.
Minha suspeita é que a China terá um caminho semelhante aos dos Estados Unidos no século 19. Crescimento decente e rápido ao longo de tempo, com grande melhoria na economia nos próximos 30 a 40 anos, mas não vai ser um processo suave. Será turbulento e uma das maiores fontes de turbulência será o sistema financeiro.

Folha - Os bancos chineses estão quebrados?
Pettis -
O clichê que os economistas usam é a distinção entre liquidez e insolvência. Os bancos chineses estão insolventes, mas não ilíquidos. Pelo contrário, eles são extremamente líquidos e entre as razões estão a política monetária e o fato de que os chineses poupam cerca de 40% do PIB.
Todos os dólares que entram na China são vendidos ao Banco Central, que os compra emitindo RMB, o que aumenta a liquidez. Isso é bom ou ruim, dependendo do seu ponto de vista. É bom para os bancos porque eles não têm de lidar com o problema de insolvência, mas é ruim porque eles estão aumentando seus empréstimos de forma muito rápida.
Em um bom sistema bancário, como o do Brasil, se víssemos empréstimos crescerem em 20% ou 30% ao ano, ficaríamos nervosos, ainda que os bancos brasileiros tenham um bom histórico.
Em um país como a China, que não tem história bancária nem uma cultura creditícia e onde o sistema é gerido mais por medidas administrativas do que econômicas, é muito difícil imaginar que um rápido crescimento no total de empréstimos não leve também a um rápido crescimento do total de créditos de má qualidade no futuro.

Folha - Qual é o ritmo de crescimento dos empréstimos?
Pettis -
O último número que vi era um pouco superior a 20%. E isso depois de ter diminuído em razão das medidas adotadas pelo governo a partir de fevereiro e março para reduzir o ritmo de crescimento da economia.

Folha - A conclusão é que o governo terá de pagar pelos empréstimos de má qualidade?
Pettis -
Acho que é muito difícil imaginar que o governo não pague. Isso levaria a um enorme problema social, porque as pessoas não têm nenhuma segurança com exceção de sua poupança.

Folha - O governo tem dinheiro para isso?
Pettis -
Em teoria, poderia emitir dinheiro, mas isso é inflacionário. Nos últimos 20 anos, períodos de instabilidade foram associados à inflação. Por isso, o governo não quer esse caminho. Se houvesse uma crise, creio que o governo anunciaria algo como o adotado na Argentina, que é uma restrição à possibilidade de os depositantes retirarem dinheiro dos bancos.

Folha - O sr. não está dizendo que a China vai ter uma crise financeira, mas sim que a situação do país é vulnerável e pode levar a uma crise caso haja problemas em algum momento?
Pettis -
Eu iria mais longe. A China definitivamente terá uma crise financeira. Terá muitas crises financeiras. Não há nenhum caso na história de uma economia emergente em rápido crescimento e processo de integração ao mundo que não tenha tido uma crise financeira.
A questão é como a crise financeira vai se manifestar, quais são seus mecanismos e suas as conseqüências.

Folha -Quanto o governo já gastou no saneamento do sistema financeiro?
Pettis -
É difícil dizer, porque o governo é dono do sistema financeiro. Gastar dinheiro no sistema financeiro é tirar dinheiro de um bolso e colocar no outro. O que foi transferido para os bancos nos últimos anos é algo em torno de US$ 50 bilhões e US$ 70 bilhões.

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