São Paulo, quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

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ALEXANDRE SCHWARTSMAN

A falácia de Sherwood

O novo argumento é que o governo não gasta, mas transfere recursos de uma parte da população para outra

ROBIN HOOD, quem diria, é a mais recente justificativa para o esbanjamento. Segundo novíssimo argumento, não é verdade que o governo gaste muito nem que a despesa pública tenha aumentado vertiginosamente no país nos últimos 13 anos. Tudo o que o governo inocentemente faz, a exemplo do salteador, é transferir recursos de uma parcela da população para outra. Como transferências a pessoas não representam consumo do governo, não haveria razões para que tal comportamento gerasse preocupação com demanda ou inflação.
No entanto, a aparência de neutralidade envolvida na noção de que o governo simplesmente tira de um grupo para dar a outro não sobrevive a uma inspeção mais cuidadosa.
Tal operação só seria "neutra" sobre o equilíbrio interno se a tributação requerida para financiar essas transferências não distorcesse de alguma forma as decisões de empresas, trabalhadores e consumidores. Isso está longe de ser verdade no Brasil, onde o setor privado é oprimido por enorme e crescente carga tributária.
De fato, entre 1995 e 2006, a arrecadação federal cresceu o equivalente a 5,8% do PIB, sendo que, desse total, PIS-Cofins (2% do PIB), CPMF (1,4% do PIB) e a contribuição para o INSS (0,7% do PIB) representam a maior parcela. São esses também os impostos que mais distorcem a atividade econômica, seja por seu caráter cumulativo, seja por desencorajarem o emprego formal.
Assim, mesmo que todo aumento de gasto público fosse destinado a transferências a pessoas, seu financiamento por meio de impostos de má qualidade reduz a taxa de crescimento potencial da economia, com repercussões sobre o equilíbrio doméstico e a inflação. Ademais, dado menor crescimento, o consumo das gerações futuras é reduzido relativamente ao consumo presente. Quem, porém, se importa, já que tais gerações não têm voto?
Não bastasse isso, há ainda dois pontos a considerar. O primeiro é que, mesmo excluindo as transferências a pessoas, o consumo do governo brasileiro não é baixo, correspondendo a cerca de 20% do PIB, comparado a uma média ao redor de 13% do PIB nos principais países da América Latina. Talvez por essa razão nossa infra-estrutura seja referência na região, e nossos serviços públicos, invejados por todo o globo.
Além disso, como notado por minha colega Zeina Latif, houve uma dramática mudança no padrão cíclico do consumo governamental nos últimos anos. Entre 1997 e 2002, o consumo do governo e o gasto privado se moviam tipicamente em direções opostas: quando o gasto privado se acelerava, o consumo do governo se retraía e vice-versa (a correlação era forte e negativa, -0,82). Entre 2003 e a primeira metade de 2007, observa-se exatamente o contrário: uma alta correlação positiva (0,67) entre essas variáveis, ou seja, em vez de contribuir para a estabilização do ciclo, a política fiscal amplia a volatilidade.
Assim, na atual conjuntura, em que o gasto privado já cresce 6% ao ano, com tendência de aceleração, a política fiscal põe desnecessariamente mais lenha na fogueira, reduzindo o espaço para queda adicional da taxa de juros.
Proclamar a falácia de Sherwood em altos brados não basta para eliminar as distorções associadas ao gasto público. Isso não altera o tamanho e a composição perversa da carga tributária nem muda o caráter pró-cíclico do consumo governamental. Serve apenas para tentar tirar o foco do necessário, e sempre adiado, ajuste fiscal.


ALEXANDRE SCHWARTSMAN, 44, é economista-chefe para América Latina do Banco Real, doutor pela Universidade da Califórnia (Berkeley) e ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central.
Internet: http://www.maovisivel.blogspot.com/

alexandre.schwartsman@hotmail.com


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