São Paulo, domingo, 13 de junho de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Ainda me recordo

RUBENS RICUPERO

A 1ª Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) foi, em 1964, o ponto de interseção de três abordagens contrastantes dos problemas mundiais: a Revolução, a Reforma, a Reação.
A Revolução foi encarnada por Guevara, ministro da Indústria e chefe da delegação de Cuba. Seu discurso, que virou hoje peça "cult", é uma rejeição sistemática das alternativas não-revolucionárias, deixando transparecer, nas entrelinhas, o desencanto com a institucionalização da Revolução Cubana. Sempre radical no projeto de vida, de Genebra Che partiria secretamente para o Congo, cenário da primeira frustração das doutrinas de guerrilha, que o conduziriam, anos mais tarde, ao encontro com a morte heróica e trágica na Bolívia.
Na ponta oposta, a Reação assumiu a forma do golpe militar brasileiro, ocorrido no meio da realização da conferência. Historiadores da Guerra Fria como André Fontaine vêem no golpe de 64 a inauguração de um ciclo de movimentos similares contra governos de esquerda, com o apoio ou a inspiração da administração Lyndon Johnson e de seus órgãos de operações clandestinas. A intervenção na República Dominicana em 1965, o golpe contra Ben Bella, na Argélia, a sanguinária exterminação dos comunistas indonésios por Suharto, o golpe dos coronéis na Grécia fariam parte da estratégia de suprimir preventivamente a possibilidade de eclosão de revoluções como a cubana ou de guerras de libertação como aquela em que os americanos se atolavam então no Vietnã.
A delegação que representava o Brasil na 1ª Unctad nada tinha do estereótipo simplório e distorcido com que se costuma descrever os diplomatas. Era gente de convicções e caráter, que acreditava no que pregava e disposta a pagar o preço do sacrifício a fim de não trair a consciência. Com desassombro e desprendimento, o chefe da delegação, embaixador Jaime de Azevedo Rodrigues, salvou os companheiros, atraindo sobre si a cassação provocada pela recusa altiva de inclinar-se ante a ruptura da ordem constitucional. Muitos dos demais integrantes recusaram-se também a continuar em Genebra e regressaram ao Brasil, em gesto que honra o Itamaraty e merece aqui ser saudado pelos que ainda se recordam.
Espremido entre revolucionários utópicos e reacionários repressivos, o senso de medida e realismo da Reforma era predestinado a ser descartado como ilusório pelos primeiros e perseguido como desestabilizador pelos últimos. As propostas para reformar, no sentido de maior equilíbrio e justiça, o sistema comercial e financeiro se originavam sobretudo da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), de seu grande diretor e primeiro secretário-geral da Unctad, Raul Prebisch, e de Celso Furtado, indiscutivelmente o mais profundo e original dos que na época buscaram refletir sobre o desenvolvimento a partir de perspectiva latino-americana.
A idéia central era o que havia de mais razoável. A fim de romper o padrão perpetuador do subdesenvolvimento, consistente na troca de matérias-primas declinantes em preço por bens industriais dispendiosos, os países avançados deveriam abrir seus mercados às exportações de manufaturas simples dos subdesenvolvidos. Estes poderiam, dessa forma, consolidar a industrialização, incorporar progresso tecnológico e adquirir os recursos para financiar as importações necessárias por meio do comércio, não do endividamento. Ganhariam todos, pois os adiantados transfeririam suas indústrias decadentes, recebendo, em compensação, mercados novos e demanda ampliada para seus bens de capital e tecnologia.
Não se tratava de sonho ingênuo. A prova é que é isso precisamente o que está a ocorrer com alguns poucos asiáticos, aos quais se juntaram a Índia, com o fornecimento de serviços, e, acima de todos, a China, que exporta para os EUA avalanchas de manufaturas produzidas localmente pelas próprias firmas americanas. Fechando o círculo, os asiáticos financiam o déficit comercial ianque comprando dólares e títulos do Tesouro. Só que, em lugar de um resultado benéfico a todos, conforme queria a Unctad, o processo seguido tem sido altamente assimétrico e excludente. De um lado, estão os "happy few" asiáticos, que se financiam graças às exportações e se protegem das crises financeiras pela acumulação de reservas. Do outro, se encontra a legião dos hipotecados até a alma, que se endividam como podem, condenados a crescimento lento, recaídas freqüentes, desemprego estrutural crescente.
A estratégia recomendada pela Cepal e a Unctad -industrialização, avanço tecnológico, liberalização gradual e prudente- foi aplicada com muito maior competência na Ásia do que na América Latina. Esta parece condenada a repetir sem cessar os erros do passado. Era o que sugeria Prebisch, ao lembrar que as crises haviam iniciado na região "um fenômeno de emancipação intelectual, que consistia em contemplar com espírito crítico as teorias vindas dos países centrais, sem arrogância intelectual -essas teorias têm grande valor-, mas partindo da necessidade de estudá-las com sentido crítico (...) buscando nossas próprias vias, não-imitativas de desenvolvimento (...), as vias da eqüidade". Infelizmente, quando "chegaram os anos de prosperidade, nos deixamos deslumbrar pelos centros (...), houve um retorno às teorias neoclássicas sob cuja vigência nos havíamos desenvolvido (...) para responder aos interesses hegemônicos dos centros e dos grupos hegemônicos da periferia (...), deixando à margem a grande massa da população, que não havia sido beneficiada pela industrialização, a não ser de forma incipiente".
Só Celso Furtado poderia dizer melhor. A ele é que se deve o enfoque histórico da teoria de desenvolvimento de uma perspectiva brasileira e latino-americana, a demonstração de que os modelos aplicados entre nós eram socialmente perversos, gerando o consumo ostentatório de uma minoria à custa da exclusão e do desemprego das maiorias. Foi Celso também que trouxe à reflexão econômica, muito antes da escola institucionalista, a importância decisiva da cultura no processo de desenvolvimento.
O golpe de 64 o encontrou na direção da Sudene, de onde saiu para longo exílio por não ter jamais transigido na condenação irrestrita da violação da legitimidade constitucional. Na abertura da conferência, ele receberá a homenagem da Unctad pela vida exemplar de pensamento e ação a serviço do povo brasileiro. Símbolo e expressão do que de melhor existe na América Latina e no Brasil, dele se poderá dizer o enunciado pelo apóstolo Paulo: combateu o bom combate, guardou a fé. Não precisa de outra recompensa.


Rubens Ricupero, 67, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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