São Paulo, sábado, 13 de julho de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

O gás da inflação

GESNER OLIVEIRA

Se persistir o aumento do preço do gás de cozinha como nos últimos meses, o problema deixará de ser apenas econômico para se tornar motivo de preocupação dos bombeiros com o uso excessivo do fogão a lenha nas cidades.
No passado, a cortina de fumaça da superinflação dificultava a identificação de problemas microeconômicos. Distorções gritantes de alguns mercados podiam passar despercebidas na infernal espiral de preços.
Felizmente o país estabilizou e as projeções de inflação se situam atualmente em patamares civilizados. Naturalmente, as maiores variações sobressaem. O gás de botijão foi o produto que teve o maior peso na inflação acumulada neste ano medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) do IBGE, divulgado nesta semana. O IPCA acumulado até junho foi de 2,94%, dos quais o gás de botijão contribuiu com 0,43 ponto percentual. O produto teve alta acumulada de 32,4% em 2002.
A forte elevação de preços está associada à liberalização do mercado de derivados do petróleo e do gás liquefeito de petróleo (GLP), ou gás de cozinha ou de botijão. Para a maioria dos mercados, a livre interação entre oferta e demanda constitui mecanismo eficiente de determinação do preço. O problema ocorre em mercados que não funcionam como nos livros.
Para além de distorções tributárias que mereceriam outro artigo, o principal problema com o GLP reside no fato de que a liberalização de preços vem sendo promovida sem que haja concorrência de fato nesse mercado. O monopólio da Petrobras deixou de existir no papel, mas ainda vigora na prática.
Três fatores dificultam a quebra de fato do monopólio da Petrobras. Primeiro, o baixo incentivo para a construção de novas refinarias. Segundo, o controle que a empresa detém de toda a infra-estrutura de transporte do GLP. Terceiro, a falta de regulação eficaz que permita o acesso de terceiros à estrutura física da Petrobras de importação e distribuição do GLP.
Em tese, a compra direta no mercado internacional poderia aumentar a concorrência. Atualmente, cerca de 30% do volume consumido de GLP no país é importado. Destaque-se que toda a infra-estrutura de distribuição do GLP é controlada pela Petrobras, que, por ter sido monopolista legal do produto por mais de 50 anos, foi a única empresa a investir em ativos dessa natureza.
A regulação exercida pela Agência Nacional do Petróleo (ANP) não tem sido capaz de garantir pleno acesso a terceiros para a utilização dessa infra-estrutura. Essa regulação não garante o desembarque do produto e seu transporte nas datas combinadas entre os agentes (importador, Petrobras e ANP) caso a Petrobras alegue falta de capacidade ociosa. Além disso, existe um prazo excessivo por parte da ANP para a obtenção de resposta ao pedido de uso dos dutos, tanques e terminais da Petrobras. Isso inviabiliza o planejamento econômico por parte de potenciais importadores de GLP, necessário para o estabelecimento de contratos de longo prazo e em grandes volumes de importação do produto.
Diante desse quadro, não surpreende que a partir de 2002, quando o governo deixou de controlar os preços do GLP, a Petrobras tenha exercido seu poder de monopólio.
A partir do último trimestre de 2001, os preços de realização da Petrobras (preço de venda ao distribuidor menos os impostos) superaram sistematicamente os preços internacionais (medidos pelo mercado europeu à vista).
A inflação é um problema macro, hoje sob controle. Chama a atenção a disparidade de comportamento entre os preços livres e os chamados preços administrados, que incluem as várias tarifas de utilidades públicas, cujo comportamento não depende exclusivamente das forças do mercado. Os preços administrados registraram expansão de 4,62% no primeiro semestre, contra 2,18% dos preços livres.
É fácil perceber que uma sucessão de distorções microeconômicas pode contaminar o desempenho macroeconômico. Daí a importância de estabelecer regras claras para regimes de transição de mercados em processo de desregulamentação que, como o do GLP, requerem tempo para se tornarem competitivos. Agências reguladoras fortes são indispensáveis para isso. Caso contrário, os consumidores -e mesmo os bombeiros- têm motivo para preocupação.


Gesner Oliveira, 46, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley), professor da FGV-Eaesp, consultor da Tendências e ex-presidente do Cade.
Internet: www.gesneroliveira.com.br
E-mail - gesner@fgvsp.br


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