São Paulo, domingo, 13 de outubro de 2002

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LUÍS NASSIF

O "Tico-tico no Fubá"

Não me canso aqui de elogiar a prodigalidade musical do Rio de Janeiro. Essa caixa de ressonância, no entanto, acabou jogando para segundo plano músicos fantásticos que se formaram fora da sua órbita de influência.
É o caso de Zequinha de Abreu, pianista contemporâneo do grande Ernesto Nazareth e que logrou construir uma obra enorme de valsas singelas, menos sofisticadas que as do mestre carioca, mas de choros clássicos, com influência maior sobre a formação do ritmo do que o próprio Nazareth.
Zequinha é de 1880, paulista de Santa Rita do Passa Quatro. Dentre as suas valsas, existem clássicos eternos da música brasileira, como "Branca" e "Tardes de Lindóia", que todos conhecem, e "Último Beijo", que minha mãe conhecia e que foi pouquíssimo gravada ("Quando eu te beijei a última vez / me lembro claramente era noite de luar"). Com todas as lembranças que a música me traz, não ousaria dizer que pudessem se equiparar aos clássicos "choppinianos" de Nazareth. Mas no choro, meu amigo, sai de baixo: "Os Pintinhos no Terreiro" e "Não me Toques" trouxeram uma contemporaneidade ao choro que nem o próprio Nazareth foi capaz.
É de Zequinha um dos clássicos brasileiros, um dos clássicos da música internacional, uma das músicas mais gravadas do mundo em todos os tempos, executada em todos os ritmos e sotaques: o "Tico-tico no Fubá".
Experimente baixar no seu computador um desses programas de download de música, como o KaZaa, e terá uma pálida idéia do que estou lhe dizendo. Se der sorte, conseguirá a gravação extraordinária da organista Ethel Smith, de 1941, com sucesso tão retumbante, que acabou por ser incluído na trilha sonora de cinco filmes americanos da época, alguns com enorme sucesso como "Escola de Sereias", "Alô Amigos", "A Filha do Comandante", "Kansas City Kity" e "Copacabana".
Poderá conseguir a gravação de Carmen Miranda, de 1945, uma interpretação portentosa, ou de Dalida, contemporânea, com seu embalo particular. Poderá ouvir "Tico-tico" orquestrado por Michel Legrand e Mantovani, Roberto Inglez e Ray Conniff, Prado Perez em mambo, Orquestra Tabajara em frevo, e Henry Mancini. Ou swingado por Stan Kenton, Charlie Parker e Tommy Dorsey. Pensará que é uma peça flamenga, com Paco de Lucia. Ou um jambo alucinado, com Desi Arnaz. Ouvirá em bandolim de diversos sotaques, como Les Brown e David Grisman, um americano fantástico, ou os cavaquinhos de Waldir Azevedo e Garoto. Ouvirá com pianistas célebres -Daniel Barenboim, Moreira Lima, Jacques Klein a Liberace. E até um hip-hop divertidíssimo de Lou Brega.
Dentre minhas gravações favoritas estão quatro clássicos: a do argentino Oscar Aleman, a insuperável do Paquito de Rivera, a de Raphael Rabello, Armandinho e Paulo Moura, e a de Pixinguinha e Benedito Lacerda.
E, no entanto, essa música que ajudou a consagrar o choro brasileiro no mundo, é de 1917. Naquele ano nasceu como "Tico-tico no Farelo", mas como tinha música com esse nome do Américo Jacomino (o "Canhoto", do "Abismo de Rosas"), virou "Tico-tico no Fubá". Ganhou letra de Eurico Barreiros em 1931 e só naquele ano recebeu a primeira gravação, da Orquestra Colbaz, do histórico maestro Gaó. Parte da história foi contada no filme "Tico-tico no Fubá" de 1952, devidamente romanceado. Zequinha era vivido por Anselmo Duarte, o maior galã da época. No filme, Zequinha era funcionário público na sua Santa Rita do Passa Quatro, que se torna noivo de Durvalina (vivida por Marisa Prado), mas se apaixona pela amazona de um circo que visita a cidade, a clássica Tonia Carrero. Depois rompe com a amazona, passa a beber, fica doente, muda-se para São Paulo e reencontra a musa a tempo de tocar pela última vez o "Tico-tico" e morrer.
Zequinha morreu cedo, em 22 de novembro de 1935, aos 55 anos. Teve tudo para uma vida tranquila. Tocava na Casa Beethoven, na rua Direita, em bares da noite, tinha seu conjunto, recebia salário mensal dos Irmãos Vitale, em troca de lhes entregar uma composição por mês. Mas tinha alma de artista.
Deixou a viúva Durvalina, mais oito filhos cujos nomes começavam por D. E, talvez, a alma partida de uma amazona de circo, que talvez nem tenha existido, mas que, de qualquer forma, não importa.

E-mail - LNassif@uol.com.br



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