São Paulo, sexta, 13 de novembro de 1998

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OPINIÃO ECONÔMICA

Governistas e chapas brancas

MAILSON DA NÓBREGA

A crítica ao regime militar cristalizou em certos segmentos da intelectualidade e da mídia um cacoete segundo o qual apoiar propostas do governo equivale a bajulação.
Quem escreve contra o governo deteria o monopólio da defesa do cidadão, da democracia e da decência. Quem escreve a favor seria "governista" ou "chapa branca".
Se alguém ousar contestar a crítica, pode ser submetido ao processo inquisitorial adotado com sucesso por regimes totalitários, pelo qual se imputa uma intenção ao interlocutor com o objetivo de desmoralizar sua posição. Em vez de discutir a questão substantiva, transfere- se a discussão para o plano da intenção presumida.
Em meu artigo de 16/10/98 neste espaço ("Confusões sobre a dívida pública"), mostrei que a Folha havia cometido um erro monumental sobre o endividamento público.
Em seu editorial de 24/9/98, a Folha afirmara que "a dívida do Estado se multiplicou por cinco desde 1994, ano da estréia do Plano Real -de R$ 61 bilhões passou a R$ 304 bilhões em julho de 1998".
Um pouco de desconfiança científica permitiria raciocinar que em uma economia estável somente um festival inimaginável de gastos, juros altos e déficits poderia multiplicar por cinco uma dívida de R$ 61 bilhões em apenas quatro anos.
O erro foi tomar a dívida mobiliária federal (a que esses valores se referem) como sendo a dívida total do Estado.
Essa dívida tem dois componentes, o mobiliário (os títulos públicos que circulam no mercado) e o contratual (empréstimos e financiamentos obtidos no país e no exterior).
Há três grupos de devedores: o governo federal (que inclui o Banco Central e a Previdência); os governos estaduais e municipais; as empresas estatais. A dívida mobiliária federal é uma subdivisão do primeiro grupo.
O conceito que melhor reflete a dívida do Estado é o da dívida líquida do setor público, que adequadamente medida cresceu 86,8% e não 400%. Aqui se considera o total do endividamento menos os créditos, como as reservas internacionais e os empréstimos concedidos ao setor privado.
O editorialista chegou a sua conclusão utilizando apenas uma parte dessa dívida, mas não esclareceu por que aos leitores. Depois do editorial, tenho constatado a frequência com que se repete a idéia da quintuplicação da dívida.
Em face do meu artigo, o editorialista poderia ter justificado sua escolha no terreno da substância. Preferiu, inquisitorialmente, produzir um novo editorial, malicioso, em que insinuava que sou "governista". Ou seja, minha intenção teria sido agradar ao governo e não apontar um erro técnico.
Reafirmei meu ponto de vista em carta à redação, que me acusou de confundir "divergência de opinião" com erro técnico.
Como voltei à carga insistindo no erro, a redação admitiu o uso apenas da dívida mobiliária, mas alegou que o conceito é utilizado por respeitados analistas e agências de avaliação de risco para sinalizar alarme sobre a trajetória da dívida pública.
Aqui se chegou perto da discussão substantiva, mas, se for verdade o que diz a Folha, esses analistas e agências também estão errando.
De fato, o crescimento da dívida mobiliária federal está influenciado pelo reconhecimento dos chamados "esqueletos", pela absorção de dívida mobiliária dos Estados e pela acumulação de reservas internacionais.
É interessante observar que, quando a União absorve dívida estadual, o endividamento do setor público não se altera e o risco da dívida total melhora.
Na atual transição, mais do que nunca, o certo é utilizar a dívida líquida total do setor público para evitar análises distorcidas. Se se deseja usar apenas a dívida mobiliária da União, deve-se acrescentar no estoque inicial os ajustes e a variação das reservas.
Se tivesse feito isso, o editorialista poderia até continuar criticando o governo, mas não poderia usar o argumento de que a "dívida do Estado" se multiplicara por cinco em quatro anos. Não teria induzido a Folha e seus leitores a erro.
Nos EUA, políticos, empresários, sindicalistas, jornalistas e economistas contrários à política de livre mercado e ao Nafta -o acordo de livre comércio com o México e o Canadá- acusam o governo de prejudicar a indústria nacional, exportar empregos e reduzir a renda dos assalariados.
Paul Krugman destruiu impiedosamente o raciocínio. O mesmo fizeram a Brookings Institution, o Twentieth Century Fund e o Progressive Policy Institute no livro "Globaphobia" (1998). Ninguém os chamou de "governistas" ou "chapas brancas".
É preciso equilíbrio para condenar ou apoiar o governo. No Brasil, pelo que se vê, é preciso também coragem quando se trata de defendê-lo de acusações injustas.


Mailson da Nóbrega, 56, ex-ministro da Fazenda (governo José Sarney), sócio da Tendências Consultoria Integrada, escreve às sextas-feiras nesta coluna.

Nota da Redação - O debate de que é objeto o artigo do ex- ministro já foi, do ponto de vista técnico, exaustivamente esclarecido pela Folha (em editorial no dia 17/10 e em resposta a duas cartas do ex-ministro em 21/10 e 28/10). Num momento em que o país depende fortemente de créditos externos, parece óbvio que a Folha dê atenção a indicadores econômicos que são relevantes para respeitados analistas e agências de avaliação de risco, ainda que não o sejam para o ex-ministro Mailson da Nóbrega.



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