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OPINIÃO ECONÔMICA
Governistas e chapas brancas
MAILSON DA NÓBREGA
A crítica ao regime militar
cristalizou em certos segmentos
da intelectualidade e da mídia
um cacoete segundo o qual
apoiar propostas do governo
equivale a bajulação.
Quem escreve contra o governo deteria o monopólio da defesa do cidadão, da democracia e
da decência. Quem escreve a favor seria "governista" ou "chapa branca".
Se alguém ousar contestar a
crítica, pode ser submetido ao
processo inquisitorial adotado
com sucesso por regimes totalitários, pelo qual se imputa uma
intenção ao interlocutor com o
objetivo de desmoralizar sua
posição. Em vez de discutir a
questão substantiva, transfere-
se a discussão para o plano da
intenção presumida.
Em meu artigo de 16/10/98
neste espaço ("Confusões sobre
a dívida pública"), mostrei que
a Folha havia cometido um erro
monumental sobre o endividamento público.
Em seu editorial de 24/9/98, a
Folha afirmara que "a dívida
do Estado se multiplicou por
cinco desde 1994, ano da estréia
do Plano Real -de R$ 61 bilhões passou a R$ 304 bilhões
em julho de 1998".
Um pouco de desconfiança
científica permitiria raciocinar
que em uma economia estável
somente um festival inimaginável de gastos, juros altos e déficits poderia multiplicar por cinco uma dívida de R$ 61 bilhões
em apenas quatro anos.
O erro foi tomar a dívida mobiliária federal (a que esses valores se referem) como sendo a
dívida total do Estado.
Essa dívida tem dois componentes, o mobiliário (os títulos
públicos que circulam no mercado) e o contratual (empréstimos e financiamentos obtidos
no país e no exterior).
Há três grupos de devedores: o
governo federal (que inclui o
Banco Central e a Previdência);
os governos estaduais e municipais; as empresas estatais. A dívida mobiliária federal é uma
subdivisão do primeiro grupo.
O conceito que melhor reflete
a dívida do Estado é o da dívida
líquida do setor público, que
adequadamente medida cresceu 86,8% e não 400%. Aqui se
considera o total do endividamento menos os créditos, como
as reservas internacionais e os
empréstimos concedidos ao setor privado.
O editorialista chegou a sua
conclusão utilizando apenas
uma parte dessa dívida, mas
não esclareceu por que aos leitores. Depois do editorial, tenho
constatado a frequência com
que se repete a idéia da quintuplicação da dívida.
Em face do meu artigo, o editorialista poderia ter justificado
sua escolha no terreno da substância. Preferiu, inquisitorialmente, produzir um novo editorial, malicioso, em que insinuava que sou "governista". Ou seja, minha intenção teria sido
agradar ao governo e não apontar um erro técnico.
Reafirmei meu ponto de vista
em carta à redação, que me acusou de confundir "divergência
de opinião" com erro técnico.
Como voltei à carga insistindo
no erro, a redação admitiu o
uso apenas da dívida mobiliária, mas alegou que o conceito é
utilizado por respeitados analistas e agências de avaliação de
risco para sinalizar alarme sobre a trajetória da dívida pública.
Aqui se chegou perto da discussão substantiva, mas, se for
verdade o que diz a Folha, esses
analistas e agências também estão errando.
De fato, o crescimento da dívida mobiliária federal está influenciado pelo reconhecimento
dos chamados "esqueletos", pela absorção de dívida mobiliária dos Estados e pela acumulação de reservas internacionais.
É interessante observar que,
quando a União absorve dívida
estadual, o endividamento do
setor público não se altera e o
risco da dívida total melhora.
Na atual transição, mais do
que nunca, o certo é utilizar a
dívida líquida total do setor público para evitar análises distorcidas. Se se deseja usar apenas a dívida mobiliária da
União, deve-se acrescentar no
estoque inicial os ajustes e a variação das reservas.
Se tivesse feito isso, o editorialista poderia até continuar criticando o governo, mas não poderia usar o argumento de que a
"dívida do Estado" se multiplicara por cinco em quatro anos.
Não teria induzido a Folha e
seus leitores a erro.
Nos EUA, políticos, empresários, sindicalistas, jornalistas e
economistas contrários à política de livre mercado e ao Nafta
-o acordo de livre comércio
com o México e o Canadá-
acusam o governo de prejudicar
a indústria nacional, exportar
empregos e reduzir a renda dos
assalariados.
Paul Krugman destruiu impiedosamente o raciocínio. O
mesmo fizeram a Brookings Institution, o Twentieth Century
Fund e o Progressive Policy Institute no livro "Globaphobia"
(1998). Ninguém os chamou de
"governistas" ou "chapas brancas".
É preciso equilíbrio para condenar ou apoiar o governo. No
Brasil, pelo que se vê, é preciso
também coragem quando se
trata de defendê-lo de acusações injustas.
Mailson da Nóbrega, 56, ex-ministro da Fazenda (governo José Sarney), sócio da Tendências Consultoria Integrada, escreve às sextas-feiras nesta coluna.
Nota da Redação - O debate
de que é objeto o artigo do ex-
ministro já foi, do ponto de vista técnico, exaustivamente esclarecido pela Folha (em editorial no dia 17/10 e em resposta a
duas cartas do ex-ministro em
21/10 e 28/10). Num momento
em que o país depende fortemente de créditos externos, parece óbvio que a Folha dê atenção a indicadores econômicos
que são relevantes para respeitados analistas e agências de
avaliação de risco, ainda que
não o sejam para o ex-ministro
Mailson da Nóbrega.
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